Fora dos circuitos de TV e lives, forrozeiros narram dificuldades para lidar com 2º ano sem São João

Eventos tradicionais nordestinos foram cancelados novamente para evitar propagação do novo coronavírus

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Por Júnior Moreira Bordalo
Atualização:

Por mais um ano, a roda de pessoas na fogueira não será completa, a disputa para saber quem tem o melhor licor da região acontecerá de forma virtual e as bandeirolas não estarão penduradas como parte da decoração das arenas de forró. Estes espaços, inclusive, novamente não receberão milhares de “postulantes a dançarinos” e os músicos encontrarão seu público através de uma tela digital. Contudo, longe dos circuitos televisivos, lives grandiosas e campanhas publicitárias, em que se encontram nomes como Wesley Safadão, Sol Almeida e Xand Avião, os “forrozeiros raízes” tentam driblar as limitações impostas pela pandemia da covid-19 no segundo ano consecutivo sem as festas de São João para arcar com as despesas ao final de cada mês.

Concurso de Quadrilha Junina em 2011 no Pelourinho, em Salvador. Foto: MateusPereira/ @mateuspereira.art

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No Nordeste, os festejos do mês junho - embalados pelos dias de Santo Antônio, 13, São João, 24, e São Pedro, 29, - mobilizam praticamente toda a cadeia produtiva da região. Cálculos feitos pelos estados em 2020 apontaram prejuízo estimado em mais de R$ 1 bilhão e, segundo o Ministério do Turismo, a não realização este ano gerará uma perda de, pelo menos, R$ 950 milhões. Um dos nomes mais conhecidos da cena tradicional, o cantor Flávio José, costumava fazer uma média de 26 shows só neste mês. “Me sinto muito triste, impotente e sem esperança de quando iremos voltar. Para ser sincero, meu coração diz que no próximo ano ainda iremos ficar em casa. É o que eu sinto”, confessa.

Para a forrozeiro paraibano de 35 anos de carreira, o lento processo da vacinação em massa e o não cumprimento, por parte da população, das orientações dadas pelas organizações de saúde, como evitar aglomerações e a utilização constante das máscaras, retardarão o retorno dos eventos. O veterano conta que a última apresentação completa foi realizado em janeiro de 2020. “De lá para cá, não entrou renda de nada, mas as contas chegam toda hora”, pontua. Em Campina Grande, uma das mais representantes do estado, um circuito de lives culturais e artísticas foi montado. No último final de semana, por exemplo, a ação contou com show de Wesley Safadão e participação da paraibana Juliette Freire, campeã do Big Brother Brasil 21.

Vista como a capital do Forró há 40 anos, Caruaru, agreste de Pernambuco, anunciou a suspensão dos eventos ainda em maio. Na edição de 2019, cerca de 3 milhões de pessoas passaram pelo município e estima-se que R$ 200 milhões tenham sido movimentados no período. Por lá, a Câmara de Vereadores aprovou o BEM São João, um benefício emergencial para contemplar artistas locais que participaram da festa há dois anos. O pagamento será uma parcela única em valores que variam de R$ 1 mil a R$ 3 mil. Além disso, as cidades Jaboatão, Olinda e Vitória de Santo Antão mantiveram os decretos de 2020 referentes a proibição de fogueiras e fogos de artifício durante as celebrações.

Pernambucano, mas “com alma de baiano”, o cantor Targino Gondim confessa que tem tentado investir nas redes sociais para lidar com esse hiato acumulado. “Mais uma vez, perdemos a nossa receita principal, que representa 80% de tudo que ganhamos. A maioria dos forrozeiros estão em situação complicada. Muitos estão vendendo até seus instrumentos e isso não é bom”, reforça. Apesar das dificuldades, o músico reitera a importância da paralisação para enfrentamento da doença que já matou mais de 500 mil pessoas no Brasil. “Acima de tudo é a vida. Precisamos seguir as orientações para evitar mais ainda a propagação desse vírus. Vamos deixar a realização das festas em segundo plano, pois assim poderemos voltar com toda força e alegria”, torce. 

Festa de São João em Salvador em 2019. Foto: MateusPereira/ @mateuspereira.art

Na Bahia, o cancelamento do São João é tema de livro

“São João passou por aí?”. A pergunta pode soar estranha para algumas regiões do Brasil, mas é comumente usada entre os baianos neste período como prerrogativa para compartilhar das pequenas festas dos vizinhos. É uma espécie de política da boa vizinhança. E buscando entender as consequências da não realização das tradições juninas no ano passado na Bahia, as pesquisadoras e professoras universitárias Lúcia Maria Aquino de Queiroz e Carmen Lúcia Castro lançaram o livro Impactos da Covid-19 nos Festejos Juninos da Bahia. A obra procura mensurar as implicações para os agentes culturais que participam destes festejos, assim como municípios, associações comerciais e barraqueiros. Além disso, identificou as medidas de enfrentamento adotadas, sendo que algumas estão sendo reaplicadas este ano pelas autoridades públicas.

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Por exemplo, o governo estadual suspendeu novamente o transporte intermunicipal no período do São João, 24, a São Pedro, 29,  para evitar que as pessoas viajem nestas datas. Antes da proibição oficial, algumas cidades oficializaram o cancelamento das festas através de decreto. Entre elas, Santo Antônio de Jesus, Euclides da Cunha, Senhor do Bonfim, Camaçari, Amargosa e Cachoeira. Nesta última, localizada a 120 quilômetros de Salvador, a prefeitura instaurou barreiras para proibir o acesso de turistas. A localidade, um dos destinos mais procurados do estado, está com 100% de ocupação dos leitos de tratamento intensivo (UTIs) destinados à covid-19. Além disso, um novo decreto em Mata de São João, Coaraci, Almadina e Itapitanga proibiu a montagem e acendimento de fogueiras e fogos de artifício.

Lúcia Maria Aquino de Queiroz acredita que, para além dos prejuízos evidenciados, a pausa de dois anos nos festejos permitiram evidenciar uma série de problemas na forma como o movimento cultural acontece. “A gente incorpora o forró aqui na Bahia de forma sazonal. Precisamos cuidar dessa tradição o ano inteiro. Os quadrilheiros não estão conseguindo pagar nem as roupas; falta ampliação dos concursos daqui. Na comemoração do próprio São João, às vezes, o palco principal é ocupado por uma atração que nem tem relação com a festa e os que têm estão em palcos sem som e iluminação adequados”, critica.

Com 27 anos de carreira, Adelmário Coelho é considerado um dos maiores forrozeiros baianos. Defensor do estilo mais tradicional do ritmo, o músico chega a fazer 35 shows só no mês de junho. “É um luto dolorido. Ninguém sabe exatamente quando terá fim. Isso que é dramático”, confessa. Para o músico a prioridade é o cuidado com a vida dos brasileiros e considera “um ato criminoso” quem nega a gravidade da doença, mas, pensando no setor musical que faz parte, lamenta a paralisação. “Existe um perfil com mais visibilidade para o patrocínio, que não é a realidade da nossa cultura forrozeira. Nunca tinha ficado uma noite de São João sem meu público; era uma coisa inimaginável”, admite. Apesar dos dados catalogados,Lúcia se mostra positiva para a realização dos festejos assim que a pandemia fora controlada no Brasil. “Sem sombra de dúvidas, o próximo São João presencial será muito iluminado no sentido de que haverá uma procura intensapor parte do público. Contudo, espero que já seja fruto de uma série de reflexões e que venha commudanças efetivas. A festa não precisa ser guiada pelo movimento midiático. A ideia é que tenha destaque de fato quem faz o São João acontecer”, reforça.

As informações do livro foram coletadas entre 10 de julho e 21 de outubro de 2020 e contou com 239 respostas divididas entre seis questionários, sendo 16 de representantes de municípios, 10 de associações, 115 de bandas e grupos musicais, 14 de festas privadas e 84 de profissionais da cultura e prestadores de serviços.