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Floresta Ópera

Festival Amazonas, em Manaus, chega à 15º edição com 'Tristão e Isolda', de Wagner

Por João Luiz Sampaio/ MANAUS - O Estado de S.Paulo
Atualização:

No coração da capital amazonense, o Clube Ideal forma ao lado do Palácio da Justiça e do Teatro Amazonas um pequeno eixo de memória da Manaus da passagem do fim do século 19 para o 20, alimentada pelo auge do comércio da borracha. Ao longo de décadas, foi palco de festas, encontros, apresentações de orquestras populares. Na manhã de segunda-feira, no entanto, era outra a trilha sonora vinda de seus salões. Acompanhada ao piano, a soprano Eliane Coelho interpretava o primeiro ato de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, observada de perto pelo diretor André Heller, acertando os detalhes da montagem que estreia no dia 19 e é o destaque da edição deste ano do Festival Amazonas de Ópera.

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A cena seria inusitada se Manaus não tivesse, ao longo dos últimos 15 anos, se tornado o principal polo produtor de ópera do País. Em sua 15.ª edição, o Festival Amazonas deslocou o foco do gênero da região sudeste. E o fez, entre muitas produções, justamente por meio da obra de Wagner - a interpretação da tetralogia O Anel do Nibelungo, a primeira produzida inteiramente no País, consolidou a fama e deu visibilidade internacional ao evento. Fazer Tristão e Isolda seria uma evolução natural - e é um sonho antigo do diretor artístico, o maestro Luiz Fernando Malheiro. Faltava um ensejo, oferecido agora pelo aniversário de 15 anos do evento.

"O primeiro ato se articula em torno de um espelho", explica o diretor André Heller, responsável pela encenação da ópera, enquanto cruza o Largo de São Sebastião em direção ao ensaio. "É como se os demais personagens fossem representações de elementos da personalidade de Isolda, que se torna a figura central. Aliás, quando se tem uma cantora como Eliane Coelho no elenco, temos mesmo é que aproveitá-la, não?", brinca.

A 15.ª edição do Festival Amazonas começou na semana passada com duas novas produções: Suor Angelica, de Puccini, e Diálogo das Carmelitas, de Poulenc. A temática religiosa aproxima os títulos, mas os espetáculos apontam para dois momentos distintos da história do evento.

 

"Era um teatro secular que, a despeito de sua grandeza, vivia até então mais de memória da belle époque que de arte", anota o secretário de Cultura do Amazonas Robério Braga, no cargo desde o nascimento do festival, quando se refere ao Teatro Amazonas. Foi com esse intuito que nasceu a Amazonas Filarmônica e, em seguida, o festival de ópera - tentando esboçar uma nova realidade na produção cultural do Estado.

Isso levou à necessidade de um equilíbrio nem sempre fácil de alcançar, entre produtores e artistas de outras praças e forças locais, que não estavam acostumadas com as demandas específicas de um evento do porte de um festival de óperas. Ao longo dos anos, no entanto, uma das consequências principais do evento foi começar a estabelecer uma nova cultura operística e musical em Manaus. "Muitos cantores da nova geração do canto lírico brasileiro tiveram suas primeiras oportunidades aqui e muitos cantores renomados e com carreiras já consolidadas nos prestigiaram", diz o maestro Luiz Fernando Malheiro, diretor artístico do Festival Amazonas e da Amazonas Filarmônica, criada em meados dos anos 90 por Júlio Medaglia e, então, composta principalmente por músicos vindos do Leste Europeu. "Por outro lado, muito se alcançou no âmbito social quando conseguimos trazer toda a produção para Manaus, com uma central técnica das mais importantes no cenário brasileiro hoje", completa.

É nesse contexto que se dá a importância da produção de Suor Angelica, que levou ao Teatro Amazonas os músicos da Orquestra Experimental da Amazonas Filarmônica, composta por alunos e jovens músicos formados, em sua maioria, por artistas da orquestra profissional, professores do Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro; e jovens cantores amazonenses, uma primeira "geração local", pode-se dizer, a chegar ao palco depois da criação do festival.

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O resultado ainda é desigual. Sob regência do jovem maestro argentino Federico Victor Sardella, a Orquestra Experimental ainda busca uma identidade sonora mais sólida - e a direção cênica de Maria Lúcia Gurgel, aluna da Academia de Ópera de Verona, na Itália, não consegue quebrar o caráter estático da narrativa em um ato sobre a mulher que, após ser separada do filho, busca refúgio em um convento onde, anos mais tarde, será comunicada da morte da criança, resolvendo então tirar a própria vida, contrariando toda a doutrina que jurara defender.

Mas, no conjunto, a importância da iniciativa fica evidente nas palavras de um personagem como a soprano francesa Isabelle Sabriè, que também participou da produção da ópera de Puccini. Ela esteve em Manaus pela primeira vez em 2009, a convite do festival. E não voltou mais para a França - a não ser para acertar os detalhes da sua mudança para a capital amazonense. "Foi o chamado da selva", ela brinca, sorrindo, enquanto conversa com a imprensa à mesa de uma pizzaria ao lado do Teatro Amazonas. "Ajustes sempre podem ser feitos, claro. Mas, apenas 15 anos depois de criado um festival em uma praça que havia muito tempo não se dedicava à ópera, poder levar ao palco toda uma produção de uma ópera complicada como Suor Angelica, praticamente só com artistas locais, é uma grande conquista. Há vozes muito interessantes no elenco, talentos a serem observados", diz. Isabelle - vencedora do Concurso de Canto Plácido Domingo de 1994 e dona de uma importante carreira internacional, com gravações realizadas em praças como Paris, também é compositora. E conta que tem trabalhado em peças complexas, nas quais busca identificar um sentido rítmico coerente nos diversos ruídos da selva amazônica. O que ela sugere, basicamente, é a existência de uma lógica especial que se compõe a partir de diversos elementos. Quinze anos depois, o mesmo poderia ser dito do Festival Amazonas.

 

Crítica: João Luiz Sampaio

Leitura sensível e eficaz para Diálogo das Carmelitas

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ÓTIMO

Em uma das cenas mais fortes da ópera Diálogo das Carmelitas, a madre superiora questiona em violento delírio, pouco antes de morrer, o sentido de sua vida de devoção, a existência de Deus e o significado da morte. A passagem oferece uma possibilidade de leitura para a obra, que narra a história de irmãs carmelitas forçadas, em meio à Revolução Francesa, a abandonar o hábito, sendo levadas à forca. O que teria atraído nessa trama o compositor Francis Poulenc e o escritor Georges Bernanos, autor do roteiro que acabaria se tornando o libreto da ópera? É bem provável, na Europa do pós-guerra, que a sensação de quebra de certezas e a oposição entre liberdade individual e vida em sociedade, além, claro, do forte caráter religioso dos autores.

Na sucessão de cenas criadas por Bernanos, tudo é intenso, dos questionamentos de Blanche ao procurar o convento à cena final, passando pelos conflitos individuais das irmãs. Por isso mesmo, é acertada a decisão do diretor William Pereira de abrir mão de toques épicos em nome de uma concepção que flerta com o minimalismo, trabalhando em cima de cenários funcionais que ressaltam de modo sensível o drama. Sua concepção nasce da música e se transforma em teatro. Por sua vez, o maestro Marcelo de Jesus retira da Amazonas Filarmônica todo o seu potencial expressivo, em uma leitura eficiente na criação dos momentos centrais do drama e permitindo aos cantores que explorem a riqueza vocal de seus papeis.

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O elenco, homegênio, foi responsável por grandes momentos de canto na récita de domingo, com destaque para a meio-soprano Denise de Freitas e as sopranos Isabelle Sabriè, Gabriella Pace, Michelle Cannicioni e Ruth Staerke, como a madre superiora. Entre os homens, o tenor Flávio Leite, de timbre bonito, soube recriar com habilidade a figura do irmão de Blanche, preso entre o apego aos valores em decadência da classe dominante e o carinho pela irmã, a quem quer proteger.

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