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Flor de pessoa

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Por Humberto Werneck
Atualização:

No primeiro dia, cheguei a pensar que havia incorporado mais um problema aos tantos que já tenho, pois a nova diarista, tendo entrado às 8 e meia da manhã, só foi sair às 8 e meia da noite. Teria eu, em vez de faxineira, contratado uma preguiça? O padrão de que dispunha era o oposto disso, umas tantas que por aqui passaram, um olho na faxina e outro no relógio. Honestíssimas, seja dito: nenhuma delas, que eu tenha percebido, subtraiu de minha casa o que quer que fosse. (Um amigo a quem fiz essa declaração correu o dedo pelo aparador: “De fato, suas faxineiras não tiram nada – nem o pó”.) O segundo dia reproduziu o cronograma do primeiro – e, para encurtar a história, não a jornada de trabalho, assim tem sido há 8 anos. Custou um pouco, mas me acostumei. Tão zeloso dos riscos da lei quanto da preservação de minha intimidade, cansei de insistir nas 8 horas regulamentares. Acabei por me acomodar à rotina de quem não fica, e sim por conta própria remanesce. Hoje, o que me causaria estranheza é se viesse despedir-se 5 minutos mais cedo. Sofrível gestor de pessoal, a começar por mim mesmo, reivindico a sabedoria de já não tentar mexer no ritmo de quem, duas vezes por semana, divide teto comigo por compridas horas, e que, pensando bem, faz o que quer. Melhor assim – e digo mais: quisera ter a serenidade com que ela administra o tempo.  Incapaz de me permitir um só minuto sem atividade, tiro o chapéu para esta senhora que volta e meia surpreendo em estado de total imobilidade, pano ou vassoura na mão, imersa na contemplação de alguma miudeza, quem sabe de miudeza alguma. Imobilidade e silêncio. Eu talvez não mereça, mas fui poupado da cantoria sertanejo-evangélica que sobe do andar de baixo. Se ela tem celular, dele não faz uso em meus domínios. Rádio, também não. Até seu caminhar é inaudível. Magrinha, desliza pela casa. E se o tal amigo correr o dedo pelos móveis, haverá de se frustrar. Sequelas, só uns quadros tortos na parede depois do cuidadoso pano seco que passou por eles.  Não é de muita conversa. De conversa alguma, na verdade, embora esteja longe de ser casmurra. Quando muito, na segunda-feira, por iniciativa minha, encara uma troca de comentários sobre o desempenho do seu Santos e do meu Cruzeiro no fim de semana. Tem seu sistema, que até ao preço de algum desconforto aprendi a respeitar. Num prédio onde não há porteiro, ela não desce ao portão quando entregadores fazem soar o interfone, e não porque, emproada, se ache importante demais para fazê-lo. Não atende telefone, a não ser quando é minha a voz na secretária eletrônica. Você já percebeu que aqui o patrão trabalha às vezes pela empregada. Sem reclamações trabalhistas.  Para além de broto, flor de pessoa. Delicada, não vai a Minas sem me trazer um queijo. Todo Natal me presenteia com uma trinca de panos de prato, caprichados que nem ela. Agora, 31 de dezembro, ignorou a folga para que eu pudesse entrar no ano novo com casa e lençóis imaculados.  De raro em raro, levanto os olhos e dou com ela na porta do escritório, à espera de brecha para encaixar algum pedido. Cândida, sapólio e sabão em barra. Ah, e se der, um saco de terra, que tem planta precisando de alimento.  Esse, plantas, seu assunto predileto, capaz de fazê-la incorrer em surtos de discreta loquacidade. Quando emerge do mutismo, quase sempre é para indagar se reparei na “novidade” – uma flor, por exemplo, na área de serviço, estreita passagem que ela mansamente converteu em área verde.  Não consigo lembrar quando e como começou. Na sua chegada, havia dois, três vasos de planta, goelas abertas de sede, pois o dono nem sempre se lembrava de aguar as infelizes. Sob nova e amorosa administração, a paisagem se transformou – a do banheiro, inclusive, onde me habituei a ver, espetadas em pequena jarra, rosas miúdas subtraídas ao jardim do prédio.  Não estou reclamando, mas preciso me esgueirar entre parede e ramaria quando vou ao quartinho dos fundos, pois minha (será minha ainda, a esta altura?) área de serviço acomoda agora 17 vasos de tamanhos variados, 4 deles dispostos no parapeito e 13 que, ombro a ombro no piso, misturam flores e folhagem. Ultimamente temos um abacaxi – o primeiro em sentido literal surgido em minha vida – que vingou em vaso e que, com seus modestos 8 cm, já se mostra amarelo o bastante para açular meu apetite. Será que ela vai se ofender se eu der a ideia? Temos também uma orquídea que, aparentemente morta, de uma hora para outra se cobriu de brotos. Não teria sido assim, explica, no vaso anterior, pequetitinho. “Ela gostou”, sorri minha florista. E eu mais ainda, Bia.   

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