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Fim de ano dentro de uma orquestra

Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Sou feliz. Depois de reencontrar Maria Olimpia após 40 anos, terminei 2010 vivendo uma experiência rara, cheia de som e de fúria. Durante 80 minutos estive no ventre da Osesp, a melhor do Brasil. Defronte do maestro Tortelier que, ao olhar para Elisabete, a musicista que toca tímpano, parecia estar se dirigindo a mim. Tinha vontade de acenar para ele. Foram 80 minutos de vertigem, para um homem que não tem ouvido musical, não decora melodias e letras. Por acaso fui colocado no meio da orquestra e os sons me atravessavam, dilaceravam, colavam-se à minha pele, me enchiam de espanto e alegria. Envolvido pela sinfonia de Anton Bruckner, o tempo paralisou.Um convite da Secretaria de Estado da Cultura me levou numa tarde de sábado à Sala São Paulo, na última apresentação do ano da Osesp. Cheguei, peguei os convites, estava na fila A do Coro. Onde seria? Ao entrar, descobri que é aquele balcão (como dizíamos em Araraquara) que fica atrás da orquestra. À minha frente, a sala olhada num ângulo de 180 graus, pensei em VistaVision ou Cinemascope, para não esquecer minha formação cinematográfica, crítico que fui tantos anos. Percebi também que estava exposto, todos na sala inteira podem ver quem está na primeira fila do Coro. Teria de me comportar, não colocar o dedo no nariz.Meus olhos desceram e arrepiei. Abaixo de mim era o palco e as cadeiras ainda vazias dos músicos, aos meus pés, ao alcance de minhas mãos. Faltava pouco para o início, palco deserto, apenas Elisabete, a que toca tímpano, estava às voltas com seu instrumento, examinava suas baquetas. Batia, sentia a sonoridade, passava uma flanela sobre a pele do instrumento, tocava suavemente com os dedos, abaixava a cabeça e conferia. Estaria afinando? Depois, Arthur Nestrovski me disse que é um dos instrumentos mais difíceis de tocar, a afinação tem de ser feita em décimos de segundos, conforme a música exige e muda o tom. Elisabete, circunspecta, mostrava-se alheia à sala e às pessoas que começavam a chegar, a conversar.Se esticasse a mão, poderia tocar aquela senhora de óculos sem aros, concentradíssima. Nas poucas vezes em que assisti a concertos, percebi que os tímpanos soavam pouco, em um e outro momento. Na sinfonia de Bruckner, eles são frequentes, sucessivos. Enfim, Elisabete pareceu se dar por satisfeita, e esperou. Em minutos os músicos começaram a entrar, tranquilos, em grupos, se ajeitando. Adriana Holtz (seria dos Holtz de Sarapuí?), que toca celo, sentou-se e pareceu ter descoberto dois assentos em sua cadeira, tirou um e sorrindo entregou a um funcionário. Sei dela, porque deu aulas para minha mulher por um tempo.Metais, cordas, violoncelos, violinos, como tem corda em uma orquestra (os experts estão rindo de mim). Começou a afinação, logo entrou o spalla, todos olharam para ele, é uma espécie de imediato, subcomandante, todos pareceram se colocar de acordo, esperaram o maestro Tortelier. Silêncio absoluto e o maestro deu sua demoradinha, fazendo suspense. Imaginei: e se ele não entra? E se decide dar meia volta e partir? E se cai no corredor e desmaia? E se fica louco? E se decide fazer uma surpresa? Porém, Tortelier entrou, alto, imponente, dominador, cabelos brancos ao vento (Que vento? Dentro da sala?), porte altivo. Quem se atreveria a desobedecê-lo? Quem, como eu, não entende de música viaja. Fazia isso porque estava ansioso para que começassem, queria que o som me devastasse.Uma vez, década de 80, o maestro Julio Medaglia fez a abertura de uma Bienal de Arte no Ibirapuera com uma peça de Erik Satie que incluía tiros de revólver, máquina de escrever, um pintor pintando cenários (em Paris, quando a peça foi ouvida pela primeira vez, o pintor era Picasso, aqui foi Aguilar). Bruna Lombardi deveria dar os tiros, mas a segurança do presidente, um ditador militar, proibiu. A mim coube datilografar com fúria. Obedeci ao sinal de Medaglia e toquei a máquina de escrever. Mas era uma orquestra menor e, atento e nervoso para não errar minha entrada, nada ouvi.Agora, mais maduro, mas ainda sem experiência de música, fiquei observando hipnotizado a regência. Quem está na plateia não tem ideia das caras e bocas. Ali fiquei, absorvendo o gestual ora delicado, ora enérgico, ora furioso, ora terno, ora íntimo, ora amplo, é algo à parte e inesquecível. Ficará comigo para sempre. As primeiras regências nunca esquecemos. Eu percebia a música entrando pelo corpo dele, possuindo-o, e ele a traduzia para cada um, porque - vocês músicos sabem disso, nós não - aquele dedo, aquela mão estendida, os braços se dirigem a um, ao outro, pede silêncio, calma, voracidade, ímpeto, brisa, sussurro, veemência. Como é diferente ouvir de frente para o maestro. As regências deviam ser assim, de costas para os músicos (!!!!!!), olhando para o público.Nervoso, via músicos passando panos por dentro das flautas e clarinetes, breves limpezas. Daria tempo, antes que o maestro olhasse para eles? Desesperante era olhar as pautas. Como entender aquilo? Lembrei-me das aulas de canto da Tereza Abrita no ginásio, a minha dificuldade com as notas. Músicos são seres especiais. Aquelas notas traduzidas pelos instrumentos me entonteciam, desvairavam de felicidade, paixão, eu inteiramente tomado, entregue, volúvel, desesperado, decidido a sair dali e ir estudar música, a sair e comprar assinatura para todos os concertos, todos na fila A do Coro. Ali deviam se sentar os reis e os presidentes (bem, Fernando Henrique Cardoso, homenageado da tarde, estava bem à minha frente, do outro lado, mas eu tinha melhor posição do que ele, juro que sim). Na minha imaginação, tive um sonho: levar o notebook para o centro da orquestra e escrever embalado pelo som. Embalo que deve ser semelhante a uma droga. Porque entrava dentro de mim, me abalava, transfigurava, me enchia de energia, coragem, pronto a grandes feitos. Ah! Que coisa estar dentro de uma orquestra. Que poema lindo olhar Elisabete e seus tímpanos! Por que não sou músico em vez de escritor?

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