Filme resgata história do colonizador italiano que lutou pelo povo do Congo

'África Negra Mármore Branco', dirigido por Clemente Bicocchi, é destaque na Mostra

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Por FLAVIA GUERRA - O Estado de S.Paulo
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Pietro Savorgnan di Brazza. Ainda que o nome do italiano naturalizado francês não diga muito à imensa maioria dos brasileiros e até mesmo dos europeus, Brazza é uma das figuras mais interessantes da história do continente negro. Nascido no norte da Itália em 1852 e morto em Dacar em 1905, foi o descobridor do Congo, na África Central, e fundou sua capital, Brazzaville em 1880. Sua história seria mais uma das centenas de sagas vividas pelos colonizadores não fosse o único explorador europeu até hoje a dar nome a uma capital africana. Mais que ter dado início à colônia do Congo Francês, Brazza era querido pelos nativos por ser um explorador pacífico - em vez de usar armas e violência, caminhava pelas terras ainda inexploradas do país desarmado e até mesmo descalço. Sua fama pacífica e o respeito que o Rei Makoko nutria por ele eram tamanhos que diziam ser ele, na verdade, um negro de quem os brancos haviam arrancado a pele. Para o povo do Congo, Brazza é um dos símbolos da possível interação racial. Só por estes feitos Brazza renderia um documentário. E rendeu. África Negra Mármore Branco, dirigido por Clemente Bicocchi, destaque de hoje da 36ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, conta esta e outras histórias. Para entender quais sãos as outras histórias que o documentário conta, é preciso falar de Idanna Pucci. Foi ela quem convidou Clemente para contar no cinema a história de Brazza. "Dei quilos de matéria que coletei durante anos a ele. Precisava de diretor para me ajudar a contar a saga", contou Idanna por telefone ao Estado. Antes de continuar, é preciso entender que, para Idanna, Pietro Savorgnan di Brazza era também o tio Pietro. A escritora e documentarista cresceu ouvindo as histórias que sua avó contava sobre este tio corajoso e nobre, inspirador para toda a família, mas cuja história continua desconhecida dos próprios italianos. E assim seria se, em 2003, uma ligação telefônica não tivesse literalmente despertado Idanna para a história que estava ocorrendo no presente e ameaçava não só a África livre que seu tio tanto defendeu antes de seu misterioso falecimento. A propósito de sua morte, até hoje há suspeitas de que Brazza foi envenenado pelos dirigentes europeus em território africano, descontentes com sua luta pelo fim do regime colonial exploratório e violento. "Meu tio era um desbravador, mas era diferente. Pregava a igualdade, a justiça e a autonomia africana. Era quase um hippie, que não usava armas e muitas vezes nem sapato. E isso, claro, desagradava os poderosos", conta Idanna. "Um belo dia, meu telefone tocou. Era o tio Detalmo, que vivia no norte da Itália e também era apaixonado pela África, onde havia estado várias vezes a trabalho, conta a autora do livro Brazza in Congo - A Life of Legacy. O tio era também fascinado pelas aventuras de Brazza e havia lido uma artigo que ressaltava seus feitos. Encantado, decidiu escrever uma carta à jornalista congolesa Belinda Ayessa, editora da revista Les Depeches de Brazzaville, que havia publicado um artigo sobre os feitos de Brazza. "Ela imediatamente disse que teria muito prazer em conhecer um descendente de Brazza. Mas, para acompanhá-lo na missão de hospedar a ilustre visita, convocou a mim. Aceitei." Belinda explicou que o presidente do Congo, Sassou-Nguesso, tinha planos para levar os restos mortais de Brazza da Argélia, onde havia sido enterrado, para a floresta habitada pelo povo Batéké, o mais importante do Congo e aliado histórico de Brazza. O então o rei dos Batéké, Makoko IIoo I, era grande amigo do italiano. Seduzido pela ideia de devolver Brazza à terra que ele tanto amava, tio Detalmo aceitou visitar a aldeia, conhecer o atual rei, Gaston Ngouayoulou, e discutir os termos da remoção. "Tudo parecia incrível até eu descobrir que não era para a floresta sagrada, mas sim para um imenso e caríssimo mausoléu de mármore de Carrara, em Brazzaville, que o corpo do meu tio seria transferido. Era tudo parte de um plano de poder e reeleição do presidente Sassou-Nguesso", conta Idanna. "Sem contar que o rei atual dos Batéké não era legítimo, pois fora nomeado por Sassou-Nguesso. Não podia concordar com aquilo, pois feria não só minha família, mas a África também", relembra a documentarista, que decidiu evitar a remoção. A partir daí, iniciou-se uma luta de Idanna e dos 15 descendentes de Brazza contra o uso indevido da imagem do ancestral. A família só concordou com a remoção do corpo em 2006, com a condição de o presidente assinar um protocolo que garantisse restabelecer o rei dos Batéké e trouxesse melhorias para a população local. No entanto, mesmo ao final do filme, a história não acaba. A família ainda processa Sassou-Nguesso no Tribunal de Paris por não ter cumprido totalmente o protocolo. "A estrada para a aldeia de Mbé, capital dos Batéké, ainda é uma trilha de areia. O liceu que leva seu nome está em ruínas. E os governantes da África atacam os líderes espirituais, mediadores pela paz em tempos de conflito." Em contrapartida, o jasmim que Idanna e o Rei Makoko plantaram na aldeia Batéké continua crescendo.

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