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Retratos e relatos do cotidiano

Filme de terror

Em meio ao breu, senti uma penugem esbarrar nas costas da minha mão. Pânico!

Por Ruth Manus
Atualização:

Dona São, nossa vizinha de frente, é realmente uma belezinha. Tem cerca de um metro e meio de altura, cabelos prateados e julgo que ela tenha mais ou menos a idade do edifício onde moramos – algo entre os 120 e o 130 anos.

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Era uma terça-feira atipicamente fresca nos dias de verão e, assim que entramos em casa, depois de um jantar, já razoavelmente tarde na noite, Dona São veio gritando pelo corredor ÓBZINHO ÓBZINHO, que pode-se traduzir no Brasil como OH VIZINHO OH VIZINHO.

O fusível da casa da Dona São havia caído e ela precisava de ajuda, pois ficara sem luz. Prontamente sorrimos e nos dispusemos a ajudá-la. Ela se lamentava por ter esquecido que não podia ligar o micro-ondas junto com o chuveiro elétrico. Já não se fazem casas como as de antigamente, praguejava Dona São.

Entramos no seu apartamento com cuidado para não tropeçar em pantufas, guarda-chuvas e vasinhos de violetas. Estávamos os 3 no escuro, em frente ao quadro de luz da Dona São, apenas com a lanterna do meu celular. Enquanto meu marido fingia que tinha, no meio de seu perfil empreendedor, uma profunda vocação para eletricista, eu comecei a me perguntar como ela teria ligado o micro-ondas junto com o chuveiro elétrico, se ela mora sozinha. Estranho. Algo não se encaixava naquela história.

Enquanto eu imaginava as hipóteses para aquele mistério, em meio ao breu, senti uma leve penugem esbarrar nas costas da minha mão. Logo pensei “impressão minha, só estamos nós três aqui e Dona São não tem gatos”. Mas pelo canto do meu olho, uma presença começou a se fazer insistente. Virei a cabeça rapidamente e dei de cara com uma velhinha de roupão escuro e cabelos molhados olhando para mim. Nem nos piores filmes de terror haveria uma cena dessas. E o pior (segurem-se nas suas cadeiras): a velhinha era a Dona São.

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Explico-me, sem esclarecer muito: Dona São estava de cabelo seco e pijama amarelo, à esquerda do Filipe e do quadro de luz, e, simultaneamente, de cabelo molhado e roupão azul-marinho, à minha direita. Senti as minhas pernas ficarem moles e meu coração pulsar na goela. Eu estava pronta para morrer ali, sem nem ter me despedido dos meus pais, tampouco feito meu testamento e meus codicilos. Não consigo encontrar as palavras adequadas para descrever o meu sentimento. Eram duas Dona São nos cercando naquela cilada.

Esse pânico deve ter durado uns 7 intermináveis segundos. Foi então que a Dona São do lado do Filipe disse sorrindo “Ah, conhecem a minha irmã?!”. 

E tudo que me ocorria era CLARO QUE NÃO, JESUS, CLARO QUE NÃO. DONA SÃO, NÓS ESTAMOS HÁ MAIS DE UM ANO NESSE RAIO DESSE APARTAMENTO E A SENHORA NUNCA TEVE UMA PORCARIA DE UMA IRMÃ GÊMEA E AGORA ESSA VÉIA ME BROTA NO ESCURO DE NOITE DE ROUPÃO COM CABELO MOLHADO E FICA PARADA DO MEU LADO QUE NEM UMA ASSOMBRAÇÃO DE TREM-FANTASMA. VALHA ME DEUS, DONA SÃO, QUE BRINCADEIRA DE MAU GOSTO. FRANCAMENTE, DONA SÃO, ISSO NÃO SE FAZ. MEU DEUS DO CÉU, ENFIEM ESSE FUSÍVEL NA ORELHA A SENHORA E A SUA IRMÃ TERRORISTA

Mas busquei alguma educação e serenidade dentro do que restava da minha alma – que ainda tentava fugir desesperada de dentro do meu corpo – e só disse “Ah, hehe, sua irmã? Não sabia que a senhora tinha uma irmã. Assustei um pouquinho aqui no escuro. Como vai a senhora?”. E a velhinha do roupão sorriu para mim de forma inofensiva. Não havia nada a temer. Mas minhas pernas continuavam bambas.

E meu marido ligou o fusível. E dissemos adeusinho. E Dona São disse obrigadinha. E Dona São número dois também o disse. E atravessamos o corredor. E entramos em casa. E eu não consegui dizer nada. E fui direto preparar um chazinho para tentar me recuperar desse trauma que nunca vai se apagar da minha existência. E o chazinho não adiantou nada. E tenho dor de barriga até hoje lembrando dessa história.

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