Fidelidade

Seres humanos gostam de criar normas, porém possuem um prazer maior em quebrá-las

PUBLICIDADE

colunista convidado
Por Leandro Karnal
Atualização:

Nossos códigos morais e jurídicos defendem a fidelidade conjugal. A tradição prega a construção de uma muralha ao redor de um casal. A norma proclama e a natureza reclama. Quase todo mundo percebe que corpo e alma não falam a mesma língua.  No livro do Deuteronômio (5,18), está dado como mandamento: não cometerás adultério. Gosto também da tradução antiga: não fornicarás. No inglês formal do século 17, a Bíblia do Rei James repete: Neither shalt thou commit adultery. O “neither” relembra que a lista de interditos começou antes, inclusive a proibição de matar no versículo precedente. A norma funciona como todo princípio, solene ou trivial: fala do ideal. Descendo ao cotidiano, a nutricionista diz tudo que faz bem ao meu corpo e percebo que meu paladar parece me afastar do caminho correto. Aparentemente, fidelidade é água, alface, rúcula e sopa de chuchu; adultério é doce de leite, pastel frito, picanha e uma garrafa de bom vinho. A Bíblia também diz que o salário do pecado é a morte (Rom 6,23). Da mesma forma, a consequência da mesa livre é a gordura no fígado, o sobrepeso e o desgaste crescente da articulação do joelho...

'A Elipse' (1948), outra pintura do belga René Magritte presente na exposição 'A Traição das Imagens', na França Foto: Adagp, Paris 2016/Divulgação

Seres humanos gostam de criar normas, porém, acima de tudo, possuem um prazer maior em quebrá-las. Regras seduzem para a contravenção. Basta meu exame de sangue exigir um jejum que toda a fome do mundo me assalta naquela noite. Minha experiência com grupos: anuncie que, devido às características daquela estrada no interior da Mongólia, não poderemos parar para banheiro com 20 minutos. Pronto! Todos são atacados de cistite galopante e parece que tomaram diuréticos aos litros. Surge o desespero e necessitamos de boas soluções em pleno deserto de Gobi. Sim, os degredados filhos de Eva continuam focados na única árvore proibida e ignoram o vasto pomar a sua frente.  Quem dá aula sabe que toda norma contém, dialeticamente, seu pedido de exceção em sala de aula. Grupos de três? Pode quatro? Pode! E cinco? Como verifiquei ao vivo, aumentar as regras de uma prova provoca novos problemas. Respondam em ordem? Surge a pergunta: crescente ou decrescente? Mesmo princípio dos casamentos: sejam fiéis, casais! Pode ser grupo de três? Seria nossa natureza? Machado de Assis coloca na boca de Deus a opinião: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”. Nos seres humanos eu tenho esperança média, porém em Machado deposito toda a minha confiança futura em melhorar minha maneira de escrever.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.