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Ficção com iluminação traseira

Por Matthew Shirts
Atualização:

Tivemos uma discussão tecnológica, eu e meu saudoso pai, na última vez que fui com minha mulher Luli à cidade de Del Mar, no Sul da Califórnia. Há dois anos isso. Como presente de aniversário, que comemoramos lá, Luli me pediu um livro, As Obras Completas de Shakespeare, da Editora da Universidade de Oxford. É lindo. Capa dura, grande, mas sem exageros, aquele papel-bíblia tão fino e forte, notas de rodapé com explicações à vontade, o escambau. É um objeto de arte que traz não só as realizações do maior escritor da história, mas o saber acumulado de séculos de editores e impressores. O preço? Inacreditáveis US$ 30, uns R$ 50.Ao mostrarmos a aquisição para Garry, meu pai, satisfeitíssimos conosco mesmos, ele nos perguntou como é que duas pessoas inteligentes, como eu e minha mulher, puderam comprar um trambolho desses? (Na verdade, o foco da crítica estava mais voltado para a minha pessoa). Era um desperdício de dinheiro, segundo ele. Levá-lo na mala para o Brasil, então, "do outro lado do mundo", colocava em questão nosso juízo. Se bobeássemos, custaria US$ 100 de excesso de bagagem. Era isso ou carregar quilos a mais na bolsa de mão. Coisa do século passado.A essa altura, Luli saiu da sala com discrição e foi cuidar da mala no quarto, preocupada. Mas antes, para meu desespero, ela chegou a sugerir que devolvêssemos o Shakespeare, animando ainda mais o meu velho. Ele deu prosseguimento à discussão comigo, explicando que a obra de Shakespeare está disponível no seu leitor eletrônico de livros, o Kindle, com notas de rodapé, dicionários capazes de elucidar todas as palavras, todas!, informações suplementares e não sei mais o quê. Levantou o aparelho na mão direita para dar ênfase ao seu tamanho diminuto e à sua praticidade, como se fosse uma bíblia. Disse, ainda, que não só Shakespeare, mas as obras de Deus e o mundo estavam lá. Muitas delas de graça, outras baratinhas, em um montão de idiomas, uma gigantesca biblioteca, enfim, que não pesava mais de 700 gramas, se a memória não me falha.Irritei-me um pouco. Havia resolvido o presente de aniversário da minha mulher tão bem... Voltei com argumentos baseados no livro como objeto de arte, colecionável, lindo, a impressão, a capa, Shakespeare. Não colou. Retrucou meu pai com a lembrança das 24 caixas de livros que eu deixara na sua garagem ao mudar para o Brasil, décadas atrás, 24!, e que ele doara, na calada da noite, à biblioteca da Universidade de da Califórnia em San Diego, como se fossem nenês largados em uma igreja. Mas onde seguem disponíveis, ponderei, a todos os alunos dispostos a mergulhar na rica sociologia marxista produzida durante os anos 60 e 70 no Brasil.- Marxismo brasileiro da época da ditadura não tem no Kindle, completei.- Ainda, finalizou meu pai, com um sorriso.Lembrei-me dessa história em meio à leitura do meu primeiro livro eletrônico na semana passada: o romance best-seller Freedom, de Jonathan Franzen, lançado há pouco aqui, em papel, pela Companhia das Letras, com o título de Liberdade.Não o li no Kindle. Foi no aplicativo para o iPad (Apple) do Kindle (Amazon), que vem a ser mais ou menos a mesma coisa - com iluminação traseira. Meu pai teria ficado orgulhoso. Se vivo estivesse, seria eu obrigado a compartilhar o romance com ele, aqui de São Paulo mesmo, em manobras informatizadas complexas, que nos levariam dias a decifrar, só para comprovar a viabilidade da operação.Adorei o romance, diga-se. Foi a leitura mais deliciosa minha desde Pornopopeia, de Reinaldo Moraes (Objetiva). Você também vai gostar, desconfio. Baixei Freedom em função do seu personagem principal, Walter Berglund, que vem a ser um ambientalista, tal como o Michael Beard, de outro romance best-seller recente, Solar, de Ian McEwan.Tenho uma tese de que o ambientalismo, como movimento, precisa da ficção, sobretudo dos romancistas. São eles que têm a capacidade de municiá-lo com humor, autocrítica, enredos e horizontes ainda não vislumbrados. A julgar por Freedom e Solar, talvez tenha eu razão. Mas cá entre nós? Prefiro lê-los no papel.

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