Felicity Lott relembra a carreira

Soprano inglesa também fala ao 'Estado' sobre os recitais que apresenta no País

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Por JOÃO LUIZ SAMPAIO - O Estado de S.Paulo
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Felicity Lott divide seu tempo entre sua Cheltenham natal, Londres e um apartamento em Paris, cidade que, no seu imaginário, ela também aprendeu a chamar de casa. A paixão pela França, ela diz, é antiga. "Começou com um fascínio pela língua francesa, desde pequena. E foi um processo natural, ao longo da vida, a busca por estabelecer uma relação bastante próxima não apenas com a paisagem do país, mas com a sua cultura." Na faculdade, estudou Letras Francesas e Latim e, como trabalho de conclusão de curso, passou um ano em Grenoble. Foi lá que a música tornou-se uma realidade profissional em sua vida. "Minha família era extremamente musical, aos 5 anos eu comecei a estudar piano e, aos 12, canto. Mas fazer da música uma profissão não era algo óbvio naquele momento. Sim, eu cantava, mas todo mundo à minha volta cantava! Na minha mente, o caminho seria me tornar uma intérprete de idiomas." Em Grenoble, porém, sua voz chamou a atenção dos professores do conservatório. E, cinco anos depois de deixar a escola, em 1975, ela fez sua estreia na Royal Opera House Covent Garden, de Londres, como Pamina, na Flauta Mágica. Um ano depois, atuou na estreia mundial de We Come to the River, de Henze e subiu pela primeira vez ao palco do Festival de Glyndebourne, também na Inglaterra. As primeiras críticas chamavam atenção para uma cantora musical, atenta às palavras e à interpretação - e não apenas com a beleza do canto. De certa forma, essa seria a tônica dos anos seguintes - e a característica principal em torno da qual ela construiu sua carreira. "Eu sou uma mulher governada por emoções", diz ela, se divertindo com a assertividade do comentário. "E isso te persegue sobre o palco, não há dúvida. O começo da carreira é o momento em que você normalmente não pode escolher tudo o que faz. Eu cheguei a trabalhar como doppione (termo que designa o cantor reserva, pronto a substituir um membro do elenco no caso de algum imprevisto) em uma montagem do Gianni Schicchi, de Puccini. Mas eu nunca me senti à vontade cantando o repertório italiano. Eu me lembro de uma audição em que o maestro pediu que eu interpretasse Una Voce Poco Fa (ária de 'O Barbeiro de Sevilha', de Rossini). Quando cheguei ao final, estávamos os dois morrendo de dar risada." O mercado do canto lírico, de alguma forma, impõe exigências aos artistas - e, para cada tipo de voz, há papéis "obrigatórios", que precisam estar no repertório de qualquer cantor. Felicity concorda e diz que não foi exatamente fácil abrir mão das possibilidades - "tantas óperas, tantos papéis" - da ópera italiana. "Mas minhas mãos eram grandes demais para ficarem congeladas", brinca, fazendo alusão ao papel da jovem Mimi, na La Bohème, de Puccini. "Agora, falando sério. Nunca é tranquilo você reconhecer que não é capaz de fazer alguma coisa. Mas, tudo bem, eu não podia cantar bem esses compositores todos. Mas podia fazer bem Richard Strauss. Já é alguma coisa, não acha?" Do compositor, destaca-se a gravação realizada com o maestro Carlos Kleiber de O Cavaleiro da Rosa, em que ela interpreta o papel da Marechala, que se depara com a paixão pelo jovem Octavian ao mesmo tempo em que se dá conta do próprio envelhecimento. A experiência, diz, foi única - e ela se ressente de não ter trabalhado mais com ele. Na constelação de maestros com quem cantou, ela faz questão de chamar atenção para outro nome: o holandês Bernard Haitink, com quem fez sua estreia em Glyndebourne. E relembra um episódio com o húngaro Georg Solti, ele também especialista na obra de Strauss. "Quando eu preparava o papel da Marechala, o procurei para pedir conselhos. Ele foi extremamente gentil e me disse: não tente fazer como as outras cantoras, cante com a sua voz; estou certo de que há coisas nessa música que você gostaria de fazer como algumas de suas colegas, mas posso te garantir que muitas delas gostariam de cantar como você o faz."Coloridos. Felicity explica que tentou montar um repertório "repleto de coloridos" para suas apresentações em São Paulo. "Eu não queria atravessar um oceano para cantar coisas chatas", brinca. "Essas são peças importantes para mim, capazes de construir, assim eu espero, um panorama rico e diversificado do repertório de canções." Ela começa com Schubert, de quem interpreta Frühlingsglaube, Nachtviolen, Lachen und weinen e An die Musik; em seguida, Fauré: Clair de Lune, Green, En Sourdine e Mandoline. Os ingleses Edward Elgar e Frank Bridge aparecem na sequência, com Shepherd's Song, Pleading e Speak, Music, do primeiro, e When you are Old and Grey e Go not, Happy Day, do segundo. Daqui em diante, compositores franceses apenas: Gounod (Le Temps des Roses e The Fountains Mingle with the River); Saint-Saëns (Cherry-tree Farm e Si Vous N'avez rien à me Dire); Offenbach (Dites-lui e Ah! Que J'aime les Militaires!); Reynaldo Hahn (Rêverie, A Chloris, The Swing e C'est très Vilain D'être Infidèle); e Poulenc (Voyage à Paris e Les Chemins de l'Amour). Canções alemãs, inglesas e francesas. Como ela define as especificidades de cada repertório? É possível falar em um jeito francês ou alemão de escrever canções? "É uma pergunta difícil. Por um lado, quero dizer que sim, mas talvez seja mais importante poder pensar em cada compositor de maneira específica", explica. "De certa forma, Schubert, se bem que isso pode ser ampliado para os alemães em geral, navega de maneira vertical pelo texto, em altos e baixos. Já os franceses parecem se curvar mais, a música flutua de maneira mais livre pelas palavras." Ela faz uma pausa. "Essa imagem, essa coisa de vertical, horizontal, é péssima, não? Mas é o que me ocorre agora", diz, rindo. "Ao mesmo tempo, porém, se você pensa em Fauré, há um controle das emoções, uma atmosfera mais dura que talvez seja mais alemã do que francesa." Outra pausa. "Vou parar por aqui, já estou me complicando", brinca. O pianista com quem Felicity se apresenta, Maciej Pikulski, aproveitará a passagem pelo Brasil para dar master classes a jovens artistas brasileiros. E ela, não gosta de dar aulas? "Eu sou uma inútil perante uma classe, de verdade", diz. "E, no caso de master classes, o problema é que não gosto do papel que você tem que assumir, corrigindo coisas, apontando defeitos. Sou péssima nisso. Certa vez participei do júri de um concurso e, no coquetel depois da premiação, fui procurada pelos cantores que não ganharam. Poucas vezes me senti tão mal!", lembra. "Mas já estou na idade de crescer, não? Preciso resolver essa questão."DAME FELICITY LOTT Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes,s/nº, Luz, 3223-3966. 3ª e 4ª, 21 h. R$ 90/ R$ 220.

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