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Retratos e relatos do cotidiano

Favorzinho

Só conseguia pensar no ridículo daquela odisseia que se instaurou. Era surreal

Por Ruth Manus
Atualização:

Começo explicando que era Páscoa, época na qual somos tomados por um espírito fraterno. O fato era que o marido da prima de um amigo (reparem bem na proximidade) veio de Viseu a Lisboa para fazer uma entrega que não deu certo. E eu me solidarizei, dizendo que faria a entrega durante a semana. 

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Pois bem. Eram fertilizantes de solo para serem entregues no Instituto Superior de Agronomia, no bairro da Ajuda. Segunda-feira almocei uma maravilhosa omelete de nada, escolha favorita de pessoas que precisam entrar num vestido de noiva, e peguei o carro para fazer a entrega. Coisa simples, 10 minutos para ir, 10 para voltar.

Me perdi. Rodei, rodei. Encontrei a portaria. Era a portaria errada. Fui procurar a outra. Me perdi. 10 minutos já eram 25. Cheguei. O segurança explicou tranquilamente: era só ir reto até o edifício amarelo, contorná-lo, entrar na segunda à direita, subir até encontrar uma rua enviesada, virar, seguir adiante, passar pelos edifícios brancos, virar à direita nas vinhas (sim, vinhas, de uva), seguir, encontrar uma rotatória, virar à esquerda, subir e pronto, era lá. Sorri com cara de imbecil, segui com o carro e me perdi na terceira coordenada.

Acenei para um carro de uma empresa de obras e pedi ajuda. O rapaz, muito solícito, disse para segui-lo. Andamos uns 10 minutos, até que chegamos ao laboratório. Agradeci muito. O rapaz desceu do carro e me deu um cartão no qual estava escrito “trabalhos verticais e impermeabilizações”. Eu agradeci e disse que se precisasse de algo o procuraria. Ele sorriu e disse “era mais para tomarmos um café qualquer dia”, piscando o olho. Voltei para minha cara de imbecil e disse “Ah. Tá. Brigada”.

Estacionei e peguei a caixa, que era bem mais pesada do que imaginava. Me deparei com uma escadaria sem fim. Respirei e subi. Ao chegar lá em cima, quase falecida, li o cartaz “usar a entrada de baixo”. Coisas de Portugal. Comecei a descer. Quando estava no meio da escada uma senhora me chamou lá em cima, dizendo que eu podia entrar por ali. Subi de novo. Agradeci e disse que tinha uma entrega de fertilizantes. Ela disse “ah, mas isso é lá embaixo”. Viu meus olhos tristes e disse “mas pode vir cá por dentro”.

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Comecei a descer a escada com a caixa nos braços e percebi que minhas calças estavam caindo. Foi a maior alegria do dia, sinal de que a omelete de nada tem servido para alguma coisa além de me entristecer. Na sala, fui recebida por uma simpática senhora quadrada- mesma medida de altura e largura- com um avental branco. Ela me perguntou “são substratos vegetais?”, respondi que não sabia nada, que nem tinha aberto a caixa, que fazia um favor para um amigo de Viseu. Ela foi chamar a responsável. Fiquei ouvindo o rádio velho berrando BUT I SEE YOUR TRUUUE COOOLORS SHINING THROUGH. A responsável chegou e me perguntou se os formulários estavam preenchidos. Eu sorri e repeti que não sabia nada.

Entrou um homem. Me perguntou - TRUE COLORS, TRUE COLORS - se também havia amostra de terra na caixa. Fiquei com vontade rir. Disse que não sabia. Chegou a quarta senhora - THAT`S WHY I LOOOVE YOU - me perguntando se era para análise de metais pesados. Não aguentei. Caí numa crise de riso, pedia desculpas TRUE COLORS, tentava explicar de novo, comecei a lacrimejar pelo canto do olho, “é só um favor... pra um amigo” e ria, ria.

Só conseguia pensar no ridículo daquela odisseia que se instaurou na tentativa de fazer um favorzinho. Era surreal. Seguiram-se mais 15 minutos de debates. Que raio eu fazia ali? Tanto trabalho em casa. No fim, me comunicaram que não analisavam aqueles tipos de substratos. Suspirei. Deixei a caixa, o telefone do homem e fui embora. Entrei no carro e comecei a rir de novo. Duas horas para nada. Ou não: às vezes o fracasso vira texto.

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