Fassbinder renasce em dois palcos paulistanos

Querelle será encenada no espaço alternativo Studio, no Centro, e As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, com Denise Weinberg, no Teatro Augusta

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Por Agencia Estado
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"Eu quero ser para o cinema o que Shakespeare foi para o teatro, Marx para a política e Freud para a psicanálise" - a aspiração (na verdade, uma obsessão) foi revelada em uma entrevista do cineasta e dramaturgo alemão Rainer Werner Fassbinder, tão obcecado pela fama que sonhava ganhar os três mais importantes festivais de cinema do mundo (Cannes, Berlim e Veneza), além do Oscar de melhor diretor, no mesmo ano. Seria então capa da revista "Time", segundo seus cálculos. Uma dose maciça de estimulantes misturada com cocaína, no entanto, abreviou seu caminho - quando morreu em 1982, com o corpo envenenado pelas drogas, Fassbinder estava a caminho dos 37 anos e já figurava no auge do mundo cinematográfico, uma posição que não lhe oferecia outra opção que não subir ainda mais. Terminara pouco antes Querelle, seu 43.º filme, e deixou uma obra construída em 13 anos, alcançando a incrível proporção de cem dias para cada realização. E, apesar do ritmo industrial, isso não representou sequer a metade do esforço empregado por Fassbinder. Seu comportamento nada convencional deixou poucos seguidores, mas sua obra ainda desperta calorosa atenção. Dois de seus principais trabalhos, por exemplo, estão prestes a ocupar palcos paulistanos, justamente dois fios importantes de sua carreira. Na quinta-feira, Querelle - O Anjo da Solidão, livre adaptação do romance do francês Jean Genet e inspirada no filme derradeiro de Fassbinder, estréia em um novo espaço alternativo, o Studio, na Rua Aurora, tradicional reduto do erotismo explícito. Como chamariz, o ator Matheus Carrieri, que já posou nu, interpreta um dos papéis principais. E, no dia 21 de março, o Teatro Augusta recebe uma nova leitura de um texto que marcou época: As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, profundo mergulho na natureza do amor escrito por Fassbinder, que o dirigiu tanto no teatro como no cinema. Como a possessiva Petra, a atriz Denise Weinberg marca seu desenlace do Grupo Tapa e retoma um papel consagrado por Fernanda Montenegro, em memorável montagem de 1982. Petra von Kant e Querelle, mais que personagens poderosos, refletem a própria figura do artista alemão, cujas formas psíquicas e criadoras estavam sempre relacionadas com a violência e o sexo. "As Lágrimas Amargas" é a história, transexualizada em um caso de amor entre duas mulheres, da relação de Fassbinder com o marinheiro negro Günther Kaufmann, o primeiro de seus três grandes amores. O diretor nunca contestou a afirmação, corrente entre seus amigos mais íntimos, de que cada palavra na peça ou era falada por ele ou para ele. Sou eu - Já Querelle, ladrão e marinheiro, traficante de ópio e assassino, é, no enfoque de Genet, um monstro incorrigivelmente narcisista. "Há algo de você nele?", perguntaram a Fassbinder durante uma entrevista filmada a poucas horas de sua morte. "Sim, sem dúvida", respondeu, já revelando um aspecto deprimido e acabado, o que levantou suspeitas de um suicídio. "Para mim, Querelle trata de alguém que tenta encontrar sua identidade com todos os meios possíveis nessa sociedade." Fassbinder também lutou para imprimir a sua marca. Durante mais de uma década, seu estilo de vida escandaloso (homossexual declarado desde os 15 anos, submetia o corpo a excessos como insônias e orgias) feriu suscetibilidades da então Alemanha Ocidental. O constante uso de drogas como impulso criativo e a seqüência de filmes em que desnuda uma sociedade ainda sensível à derrota na 2ª. Guerra Mundial provocaram escândalo e admiração. Seu estilo irascível, no entanto, escondia uma busca incessante de carinho e reconhecimento, pois necessitava viver rodeado, o que explica o fôlego interminável para filmar, que o mantinha constantemente cercado de auxiliares. Quando foi encontrado morto, deitado na cama, com um cigarro apagado na mão esquerda e um fio de sangue escorrendo do nariz, Fassbinder estava com a agenda lotada para os quatro anos seguintes - o jornal "The New York Times" chamava-o de "o messias do novo cinema alemão", reverência a um artista que conseguiu passar para a tela em imagens poderosas o cotidiano infernal criado por ele na vida real. Assim, observou Robert Katz, um de seus colaboradores e biógrafos, a morte poderia parecer a paga recebida por seus pecados.

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