Farhadi dispara como favorito

Será difícil aparecer na competição outro filme realmente excepcional para tirar o ouro do iraniano 'A Separation'

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

E, no sexto dia, chegou o vencedor do Urso de Ouro. Pode ser que ainda surja algum outro concorrente de peso, mas terá de ser realmente excepcional para tirar o ouro do iraniano Asghar Farhadi. Há dois anos, ele saiu de Berlim com o Urso de Prata, por Procurando Elly, que já era bom. O novo filme é muito melhor.Existem duas meninas na história de Nader and Simin, a Separation. Uma é filha do casal que, na abertura do filme, senta-se diante do juiz para discutir a separação. Na coletiva, o diretor explicou que o Irã pode ser um país de forte tradição religiosa, mas os choques culturais e a modernidade cobram seu preço - a taxa de divórcios é altíssima. E por que eles se separam? Ela quer ir, dadas as circunstâncias, para o exterior. O juiz pergunta: quais circunstâncias? O marido se sente responsável pelo pai, que sofre de Alzheimer.A outra menina é justamente a filha da mulher contratada para cuidar do pai enfermo. No primeiro dia, quando ela chega à casa, o velho urinou nas calças. Ela liga para um serviço de orientação religiosa - o Disque Mulá - e pergunta se é pecado fazer a higiene do ancião. Na coletiva, Asghar explicou que só filhos, independentemente de sexo, podem tocar nos doentes. Uma mulher teria dificuldades de se explicar para um líder religioso por fazer a higiene de uma pessoa que não seja da família, e do sexo oposto.As duas meninas, num determinado momento, trocam um olhar decisivo. De ambos os lados, as famílias parecem estar se desintegrando. Há uma rede de situações dúbias - religiosas e morais -, que fazem do filme um permanente desafio para o público. É como andar em terreno minado. A cada minuto, Asghar Farhadi propõe um problema novo. É verdade, é mentira? É autorizado ou não? Pela lei dos homens ou pela lei de Alá? O olhar que as meninas trocam é revelador. O diretor olha a sociedade patriarcal iraniana interessado na situação da mulher. Fica subentendido que somente ela poderá mudar esse mundo arcaico.O elemento deflagrador da tragédia não é tanto a separação - e o filme fecha um ciclo, chegando ao final no mesmo lugar, em aberto, quando a menina deve decidir com quem vai ficar. O pai é acusado de haver provocado a queda da doméstica, que teria perdido seu bebê em consequência disso. Nada é o que parece. As coisas são sempre muito mais complicadas. O diretor transmite um sentimento de urgência. Na coletiva, ele não fugiu ao espinhoso tema da prisão de Jafar Panahi no Irã. Disse que, para jornalistas e cineastas do mundo inteiro, o caso é de princípio. Envolve um posicionamento político, ou ético, ou ambos. Para ele, é isso e mais - Panahi é seu amigo, seu irmão. Ambos compartilham esse desejo de falar sobre mulheres num mundo controlado por homens.Nietzsche. A Separation, Uma Separação, passou ontem pela manhã. Na noite anterior, Bela Tarr já havia elevado o nível do festival. O Cavalo de Turim - nas verdade, é uma égua - incita à admiração, mas não é bem o tipo do filme para gostar. É possível entender? O filme reporta-se a esse dia de 1889 em que o filósofo Nietzsche, em Turim, reagiu contra esse carroceiro que maltratava seu animal. Levado paras casa, ele ficou incomunicável por dois dias, disse uma frase - "Mãe, acabou" - e mergulhou, definitivamente, na loucura. Isso é história, com maiúscula, todo mundo sabe, mas e o cavalo?Segue-se a história do cavalo - da égua. Seu dono leva uma vida miserável com a filha. O filme oferece a narrativa de seis dias na vida dos dois, ilhados pelo frio e pelo vento, num inferno devastador, numa casa que não oferece nenhum conforto. Os mesmos gestos repetidos, pouquíssima interferência do mundo externo. A água do poço seca, a luz se extingue. Mais do que bíblico, Bela Tarr é apocalíptico. O mundo, senão está terminando, dá a impressão de parar. O Cavalo de Turim impressiona, mas é, ao contrário do concorrente italiano, uma admiração fria.

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