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Fantasmas à deriva

Ideia para uso próprio e de outros escribas: lançar livro diretamente no sebo

Por Humberto Werneck
Atualização:

Já falei do plano que tenho de lançar livro não em livraria, mas num sebo. Para queimar etapas. Lançado ali, ali mesmo poderá ficar, tão logo o garçom recolha as taças de vinho branco, os pratinhos com patê verde e as cumbucas antes habitadas por aquelas bolotinhas multicoloridas. O comprador ficará dispensado de ler, pois livro de sebo, em princípio, já vem lido. Para o autor, haverá a vantagem de poder acostumar-se, já no lançamento, com a experiência desagradável de topar com seu rebento na poeira de um sebo. 

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Em Minas Gerais, a propósito, se conta como tendo acontecido ali a história do medalhão das letras que, ao fuçar entre volumes literalmente entregues às traças, encontrou, coberto de poeira, um exemplar do que supunha ser a sua obra-prima. 

Coração aos solavancos, dedos trêmulos, pinçou o volume na estante e, sucumbindo à temerária tentação de abri-lo, deu de cara com a dedicatória que ali garatujara para um confrade, com o qual partilhava, além do hábito de produzir subliteratura, uma inextirpável antipatia de mão dupla. Detestavam-se os dois cordialmente, como sói acontecer entre escritores - mas não era este o advérbio que ele, pessoa peçonhenta, havia encastoado na dedicatória, redigida com os maus bofes de quem atira um punhado de folhas de urtiga. “Para fulano de tal, atenciosamente, o beltrano.” Sim, o mesmo “atenciosamente” com que se fecha a mais impessoal das correspondências comerciais. 

Sentindo-se diante de uma rejeição também literária, algo para ele ainda mais ultrajante que a mudez da crítica, o homem de más letras decidiu passar por cima de sua conhecida sovinice e desembolsar uns trocados na compra do livro, tão velho quanto virgem, cujo baixo custo, aliás, lhe bateu como ofensa adicional. Em seguida, despachou-o de volta para o colega - não sem antes acrescentar à primeira dedicatória um dose redobrada de desprezo: “Com renovadas atenções”.

Não cheguei a tanto ao encontrar num sebo, dias atrás, um dos 500 exemplares, numerados e rubricados, de um livro de contos que publiquei, faz 12 anos, em edição particular, fora do comércio, com o objetivo de presentear amigos. Afinal, ele não estava em má companhia: a poucos palmos de distância, Jean-Paul Sartre piscava o olho torto para eventuais compradores. Se num sebo há de tudo, por que não algo de minha lavra? 

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E até mais do que isso. Quatro anos atrás, alguém me deu notícia de livro meu que nunca existiu, O Perfil no Jornalismo, oferecido por um alfarrabista em Simões Filho, Bahia, ao preço de 25 reais. Algum malandro apropriou-se de anotações que usei numa palestra, providenciou encadernação com espiral e botou à venda. Quando, intrigado, tentei comprar, havia desaparecido. Esgotei em Simões Filho.

No caso do livro de contos, que por sinal se chama Pequenos Fantasmas, assimilei perfeitamente a constatação melancólica de que ele, mesmo escrito e editado com tanto capricho, tinha ido parar na vala comum de um sebo. Já estava calejado, pois não foi a primeira vez que isso aconteceu. Na primeira, aquela, sim, traumatizante, hesitei antes de ler a dedicatória. Quem teria enjeitado a minha esmerada prenda literária? Senti alívio ao encontrar ali um prenome dos mais usuais. Dissipou-se-me (diria o Temer) o impulso masoquista de fulanizar o autor da descortesia: se podia ser tantos, então era nenhum. 

O destinatário de outro exemplar dos meus fantasmas, o de n.º 410, teve a delicadeza de borrar seu nome na dedicatória, de modo a torná-lo ilegível. Como alma piedosa que resgata um enjeitadinho na calçada, trouxe-o comigo para casa. Foi consolador constatar que alguém compra livro meu, ainda quando esse alguém seja eu mesmo. Só não o faço mais frequentemente porque alguns alfarrabistas, com certeza apostando mais na tiragem diminuta do que no suposto valor de minha prosa, vêm pedindo por ela preços por demais obesos. Com especial voracidade, certa buquinista de Belo Horizonte, que, ao pedir um despropósito, só pode estar de olho numa valorização póstuma do autor. 

Mas voltemos àquele exemplar que retornou às minhas mãos. Sem mágoa nem ressentimento, arrematei-o, com o objetivo de lhe dar uma segunda chance. E estou desde já preparado para a possibilidade de que hora dessas, num sebo, venha a topar outra vez com meu livrinho, acrescido agora de mais um borrão na folha de rosto. Quem sabe acabará ele por fazer história, que nem a casaca do filme Seis Destinos, de Julien Duvivier, no original Tales of Manhattan, título meio trocadilhesco, uma vez que tails, com a mesma pronúncia de tales, é sinônimo de casaca? (Desnecessário dizer que não é meu tanto saber cinematográfico, e sim do Sérgio Augusto, a quem jamais recorri em vão.) Como a peça de roupa do filme, meus fantasminhas rodariam por aí, expostos à possibilidade, quem sabe, de nessa peregrinação adquirirem, além de fungos, algum peso literário. 

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