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Família pede ajuda para contar sua história

Arquivo Nacional mantém seu acervo, mas fotos, músicas e textos ainda estão perdidos

Por Roberta Pennafort
Atualização:

Mário Lago não era exatamente um sujeito organizado, que se preocupasse com o ordenamento de um arquivo. Em quase 70 anos de vida artística (estreou como autor teatral, com a revista Flores à Cunha, no mesmo ano em que se formou advogado, 1933), sua produção sempre foi alta. Guardado no Arquivo Nacional, o acervo de fotos, livros, textos e até bilhetinhos trocados com amigos como Ataulfo Alves, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Luiz Carlos Prestes, é bem rico. Mas muita coisa se perdeu. Agora, dada a amplitude do projeto do centenário, os quatro filhos apelam à boa vontade dos que tiverem contribuições a dar. "Este mês, a Globo vai lançar uma campanha institucional nesse sentido. Em cada peça (foram 31, segundo contagem da biografia Mário Lago, Boemia e Política, de Mônica Velloso, de 1997), havia músicas, só que não há registro", exemplifica Mário Lago Filho, a quem o pai só tratava de "xará".

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"Fora a desorganização, a casa dele foi invadida várias vezes pela polícia, e levaram coisas", completa a filha Graça Lago. Isso se deu porque o pai, ainda que nunca tenha se filiado, mantinha colaboração estreita com o Partido Comunista. Foi preso seguidas vezes, primeiro em 1932, na faculdade, e em 41, 48, 64. Estava sempre preparado para novos acréscimos em seu prontuário, tanto que mantinha uma maleta com escova de dente e pasta, pente, sabonete...

 

Desde rapaz, engajava-se por uma questão humanitária, queria ver a vida do povo melhorar. Descrevia-se como "vocacionalmente rebelde". Sonhava com um Brasil sem exploradores e explorados. "Eu não queria nascer, tiveram que me arrancar a ferros. Até parece que estava adivinhando a merda de mundo que ia encontrar. Pois resolvi entrar na briga pra acabar com essa merda!", sua biografia o cita.O escritor Sérgio Cabral, que compartilhou com ele anos de paixão pela boemia, música popular e militância, lembra de uma vez, no início da década de 70, em que foram de Fusca até o sítio do cantor Silvio Caldas, em Atibaia (SP), pedir-lhe ajuda. "Fomos encarregados de chamá-lo para participar de um show que levantaria recursos para o Partido, mas não deu certo, ele não gostava disso", lembra. "Mário nunca saiu da ativa. E é autor de um dos versos mais bonitos da música brasileira, "Perdão foi feito pra gente pedir" (de Atire a Primeira Pedra, parceria com Ataulfo)."Nos dois musicais que Cabral escreveu com Rosa Maria Araújo, ambos em cartaz no Rio, Lago está presente. Em Sassaricando, Aurora (que fez com Roberto Roberti) é dos números mais empolgantes; em É Com Esse Que Eu Vou, entraram Atire... e Ai, Que Saudade da Amélia (também com Ataulfo, outro momento de coro no teatro). Amélia virou até verbete de dicionário, sinônimo de abnegação feminina. Lançadas entre 41 e 44, são cantadas nos blocos e nas noites da Lapa por gente cujos pais nem eram nascidos então. São das chamadas "músicas eternas". Vêm de um sujeito que é lembrado pelo público como um ancião, mas que, para os mais próximos, "jamais ficou velho". Para este ano, planeja-se o lançamento de dois CDs: Folias do Lago será de sambas e marchas de carnaval tocadas pelo Cordão do Boitatá; outro terá letras e poemas nunca musicados, já entregues a compositores como Lenine, Pedro Luís e Frejat. O documentário deve ficar a cargo de Marco Abujamra, o mesmo do filme sobre Jards Macalé; os livros de reminiscências que escreveu, todos fora de catálogo, virariam um volume único; os shows seriam no Rio e em São Paulo, na rede Sesc. "Pode até não ser como o idealizado, mas tudo vai sair", promete o "xará".Dureza. Lago nunca juntou dinheiro. Sustentou a prole de cinco (um morreu) e "um monte de comunistas". Teve um imóvel no início do casamento com Zeli, mas terminou a vida num apartamento alugado no Posto 6, no fim de Copacabana. Viveu ali por 30 anos, entre filhos, netos e livros que se espalhavam até o banheiro. Não tinha mesmo vocação para enriquecer com a obra: os filhos contam que ganham R$ 2 mil por trimestre com direitos autorais; no carnaval, chega-se a R$ 10 mil.Nos anos de dureza, fez traduções, dublagens, textos para enciclopédias. Isso mais intensamente em meados de 64, quando as músicas já não encontravam tanto sucesso, o rádio decaía, a TV ainda o capturava. Alto, bem apanhado e com boa voz, fez uma novela por ano na Globo nos anos 70, participou de especiais, ganhou prêmios de interpretação. Fez tudo o que quis, como resumiu: "Bem ou mal, mas só fiz aquilo que me despertava paixão. A vida tem que ser vivida lá no fundo."

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