Família Brasil Os bolsos do morto

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Por Redação
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O morto não é exatamente um amigo. Mais um conhecido, mas daqueles que você não pode deixar de ir ao velório. E lá está ele, estendido dentro do caixão forrado de cetim, de terno azul-marinho e gravata grená, esperando para ser enterrado.Se fosse um amigo, você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido, você comenta com o homem ao seu lado - que também não parece ser íntimo do morto:- Poderiam ter escolhido outra gravata...- É. Essa está brava.- Já pensou ele chegando lá com essa gravata?- "Lá" onde?- Não sei. Aonde a gente vai depois de morto. Aonde vai a nossa alma.- Eu acho que a alma não vai de gravata.- Será que não? E de fatiota?- Também não.- Bom. Pelo menos esse vexame ele não vai passar.- Você é da família?- Não. Apenas um conhecido.0 0 0 Você examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!Você diz para o outro:- A coisa mais triste de um defunto são os bolsos.O outro estranha.- Como assim?- Os bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas, caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...- Pepsamar.- Pepsamar, cartão perfurado da sena, recortes de artigos sobre a situação econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial e guardou. Entende?- Sei...- E aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um chaveiro.- Você acha?- Claro. As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!0 0 0 Você se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para reprová-lo. "Mais respeito", dizem as caras viradas. Você faz um gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas continua, falando mais baixo:- A morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.- Sem piedade.- Nenhuma.

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