
18 de março de 2012 | 03h11
Você tenta se explicar.
- Desculpem, eu...
Mas dizer o quê? Foi o trânsito? Você acordou tarde?
- Eu, eu...
Ninguém quer ouvir sua explicação.
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Alguém pega o seu braço, ao mesmo tempo em que faz um gesto pedindo para você não falar com ninguém. Não há tempo para isso. O importante é não atrasar mais a coisa. Você é puxado para dentro de um recinto onde a aglomeração é maior. As pessoas abrem caminho para você passar. Você vê mais caras conhecidas, mas nenhuma amistosa. Todos estão cansados de esperar. Onde já se viu, chegar atrasado desse jeito?
Logo hoje?
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A pessoa que puxa você pelo braço se vira, examina você e pergunta:
- Você vai assim mesmo?
Você se olha.
- Assim como?
- Sem gravata?
- Esqueci a gravata.
- Tome a minha.
- Obrigado. Depois eu...
Você se dá conta que, de onde vai, não poderá devolver a gravata.
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Chegam ao caixão vazio, em volta do qual estão os seus parentes e amigos mais próximos. E o padre, que também olha o relógio acintosamente, antes de perguntar:
- O que foi, esqueceu?
- Não, é que...
O padre também não quer ouvir desculpas. Diz que é inconcebível aquilo, alguém carregar seu próprio cadáver durante toda a vida, sabendo que terá que entregá-lo no fim, e simplesmente esquecer. Tão inconcebível quanto um entregador de pizza esquecer, no meio do caminho, o que está fazendo.
Ou pensar que a pizza é sua.
- O que foi? - pergunta o padre. - Pensou que pudesse ficar com o corpo?
- Não, eu...
- Está bem, está bem. Coloque o seu corpo no caixão, rápido. Está em cima da hora.
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Você deita no caixão, depois de botar a gravata. Pensa: os defuntos são bem vestidos pela mesma razão que a gente limpa qualquer coisa emprestada antes de devolver. Estranha ninguém ter pedido uma vistoria para saber o que você fez com o corpo, se está faltando alguma parte, se você foi um inquilino cuidadoso ou relaxou na manutenção. Pensa em perguntar se lhe darão algum tipo de recibo. Mas desiste porque já estão fechando a tampa.
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Aí você acorda.
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