Falso dilema

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Nós temos palhaços em atividade constante entre nós, que estão muito acima dos palhaços de qualquer outro grande país.(H.L. Mencken)O livro mais vendido na categoria de não ficção na Amazon na sexta-feira era Where"s the Birth Certificate? - The Case That Barack Obama Is not Eligible To Be President (Onde Está a Certidão de Nascimento? - O Argumento de Que Barack Obama Não É Elegível para Ser Presidente). O livro subiu para o primeiro lugar nas pré-encomendas, porque só será lançado no dia 17 de maio. Isso mesmo, será lançado, com esse título. O autor é Jerome Corsi, um mentiroso patológico com longo currículo de promoção de teorias conspiratórias, que, na campanha presidencial de 2008, foi bem-vindo na rede Fox para alertar o eleitor sobre a - inexistente - dúvida quanto ao local de nascimento de Barack Obama.Se o exasperado presidente americano achou que ia colocar um ponto final no que chamou de "bobagem" da certidão... não, Obama não é ingênuo a ponto de imaginar que o obscurantismo racista por trás das acusações seria aplacado por fatos e documentos.Na mesma coletiva em que se autocongratulou por ter "forçado" o presidente a apresentar sua certidão de nascimento, o execrável Donald Trump engatou uma primeira e já arrancou a próxima rodada circense: cadê o histórico escolar de Obama? Se ele era mal aluno na primeira faculdade, como entrou para Harvard e Columbia? Racismo!, acusaram o David Letterman e Fareed Zakharia, o comentarista da Time. Pensando bem, chamar Trump de palhaço é insulto para quem é palhaço profissional e faz as pessoas rirem de maneira benigna."Trump quer ser o novo McCarthy", disse Bob Woodward, o jornalista celebrizado pela investigação do escândalo Watergate. Os anos 70, como vão longe. Os repórteres políticos sérios corriam atrás dos fatos e não pegavam carona no avião do dono de cassinos, numa derrubada de fronteira entre a cobertura jornalística de uma campanha presidencial e de um reality show. O próprio Trump, na sua coletiva, aproveitou para promover seu programa, que passa aqui na NBC.É doloroso assistir ao espetáculo de contorcionismo dos jornalistas. "O show de Trump já se esgotou?", pergunta o New York Times. O show de Trump é uma coprodução do Times, do Wall Street Journal, Washington Post, dos telejornais e das revistas, os mesmos que orgulhosamente publicam anúncios, cada vez que ganham um prêmio Pulitzer ou Peabody.No dia 20 de março, jornais e TV"s da Flórida e agências de notícias com exceção de uma, decidiram ignorar o pastor Terry Jones, um radical que comanda uma seita seguida por um punhado de lunáticos, a maioria, seus parentes, quando ele avisou que ia encenar o "julgamento " do Alcorão. O livro sagrado muçulmano foi "condenado" e queimado. Jones não teve o sucesso de Donald Trump de atrair a mídia para sua encenação. Mas, Andrew Ford, um repórter freelancer de 21 anos da Agência France Presse, foi lá e redigiu um texto curto. No dia 10 de abril, multidões enraivecidas assassinaram 24 pessoas, inclusive 20 funcionários da ONU em Mazar-i-Sharif, no Afeganistão. O telegrama da France Presse, assinado por Ford e ignorado nos Estados Unidos, tinha decolado mundo afora, e o presidente afegão Hamid Karzai afiou seu oportunismo ao destacar o incidente, inflamando os ânimos na véspera do massacre.Alguns comentaristas chegaram a culpar o repórter inexperiente e um deles, na Forbes, acusou: "Quando o Jornalismo 2.0 Mata." É claro que o rapaz não é responsável pelo sangue derramado em Mazar-i-Sharif. Assustado com a súbita notoriedade, Ford argumentou que era melhor ter havido ao menos uma testemunha objetiva no local do que deixar outros distorcerem o fato de acordo com o próprio interesse.O intervalo de 11 dias entre o gesto de Terry Jones e o massacre afegão despertou a curiosidade de Steve Meyers, o editor do site de mídia Poynter.org e o que se seguiu foi uma discussão sobre a diferença entre suprimir fatos e tornar-se instrumento de propaganda para indivíduos que, como Jones, são radicais fabulistas e figuras marginais.Donald Trump não é um marginal, no sentido comum da palavra. Mas ele é um radical fabulista. O fato de ser dono de prédios, campos de golfe e cassinos, por si só, não lhe confere credibilidade. Quando Obama surpreendeu os repórteres sonolentos no briefing matinal da Casa Branca, e foi direto ao assunto da certidão, ele alfinetou a audiência de jornalistas. Lembrou que não consegue entrar em cadeia de TV quando anuncia iniciativas relevantes. Mal Obama virou as costas, em todos os canais, pipocaram repórteres choramingões perguntando: será que a certidão coloca um ponto final à controvérsia?Que controvérsia? O local de nascimento de Barack Obama nunca esteve em dúvida. Foi a imprensa que se apresentou como publicitária de um radical que fatura tocando fogo na verdade.

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