Falando para quem mexe com a terra

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Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Maria Bethânia. Estou contigo e não abro, como se dizia certa época neste Brasil. Você merece o que pediu pelo seu blog de poesia, e muito mais, o dobro, o triplo, dez vezes. Se porcarias como esses musicais americanos importados recebem uma grana alta, por que não a cantora que tem a mais coerente e bela carreira da música popular brasileira? Poesia é fundamental para abrir o coração.Comecei contigo, Bethânia, continuo, para te contar a experiência que, semana passada, tive no interior do Estado, em Santa Cruz do Rio Pardo, pequena e aconchegante cidade. Poesia é também o contato com a terra. Quando a bibliotecária Haydé Augusta Rosa entrou comigo na escola agrícola do Centro Paula Souza, fui tomado pelo cheiro de café fresco. Ao me aproximar da mesa, o professor Luis Alberto Belezi, o Belo, me estendeu uma xícara. A fumacinha tênue e perfumada me conduziu à casa de minha avó Branca, em Araraquara, onde todas as tardes ela coava café caboclo, ralo e doce, que tomávamos com pão de coco, enroladinho.Enquanto esperava o momento de inaugurar a biblioteca, sorvi aquele café que me aqueceu, trocando ideias com Belo sobre coadores de pano, melhores do que esses industrializados, de papel. Aqueles coadores de pano que de tão usados adquiriam a cor amarronzada e queimavam melhor o pó. Coadores feitos em casa, era preciso fervê-los na água misturada ao pó, para "amaciar", assim como havia gente que pedia aos filhos ou irmãos para usarem o sapato novo, a fim de "amaciarem".Estive no Centro Paula Souza para inaugurar a biblioteca da Escola Técnica Estadual Orlando Quagliato, uma luta da bibliotecária Haydé. Ainda tem muita gente assim no Brasil. Para um escritor é bênção/entusiasmo ver mais uma biblioteca aberta, elas são bases para a cultura, o hábito da leitura, a viagem pela fantasia. Imaginem a primeira biblioteca de uma escola agrícola, na qual os livros técnicos sobre solo, técnicas de plantio, processamentos agropecuários, produção vegetal, clima, suinocultura, estatísticas vão conviver com romances, poesia, contos e crônicas em que a imaginação corre solta. Uma alegria ver uma biblioteca numa escola pública em que a primeira lista de material escolar pede enxada, chapéu de palha, botinão, jeans usado e camisa de manga comprida para enfrentar sol e chuva. Considerei-me privilegiado. Quantos autores já viveram esse momento de contato com gente que trabalha a terra e viu pela primeira vez um escritor pela frente e ouviu os processos de criação, essa gente que também mexe com a criação daquilo que nos sustenta?Ouvi uma reação curiosa contada pela Leni de Fátima Dário, coordenadora da escola. Uma pessoa que deveria ter ido ao aeroporto de Bauru me buscar, pediu a uma colega que fosse em seu lugar. Estava entusiasmada, porém intimidada. Achou que não saberia o que conversar com um escritor, que tipo de assuntos me interessavam, para ela eu devia ser distante, inacessível, difícil, ia falar de temas altamente intelectuais, acadêmicos. O bom dessas viagens é a desmitificação da inacessibilidade do escritor, nesses momentos mostramos o que realmente somos, gente do dia a dia, normal (bem, tenho algumas dúvidas). Tirando minha cara brava, amarrada (é de nascença), aquela mulher acabou descobrindo que falo de tudo, de literatura, ferrovias, futebol, caipirinhas, curau, mulheres, filmes e fantasmas.Sim, fantasmas! Porque Edvaldo Nicolini, que também se empenhou para levar um escritor à escola agrícola que ele dirige, me avisou que há (ou dizem que há) um fantasma assombrando o porão da sede urbana da escola, bonito prédio histórico, de altíssimo pé-direito, em cuja fachada está escrito: Meninos de um lado, Meninas do outro. Inscrições que vêm dos tempos em que homens e mulheres estudavam separados por paredes. Eu queria, porque queria saber do fantasma, pensei em passar a noite lá, não me deixaram. Confesso, era uma bravata. Dormi no hotel!O refeitório da escola, no campo, foi montado para a conversa com os alunos. Eram 500 (há gente de todos os Estados, até do Pará) e me deixaram com a boca seca, ansioso. Vieram alunos de outras escolas, inclusive da Fafil, de Letras. Como conduzir uma fala para aquela gente que tinha olhos brilhando e que vive em outro mundo, pé no chão, digo na terra? Contei histórias, mostrando que literatura é prazer. Foram duas horas com fala, perguntas, respostas. E, então, pose para fotos em celulares. Antigamente eram autógrafos, hoje são fotos. Os próprios alunos, em poucos minutos, remontaram o refeitório, o almoço começou. Tudo que ali se produz ali se come. Sentei-me a saborear alface tenra, tomates suculentos, maionese fresca, lombo de porco com abacaxi, frango assado crocante, como poucos restaurantes quatro estrelas desta São Paulo conseguem fazer. Coisas da terra à nossa volta. Ao regressar a Bauru para pegar o avião, atravessei um milharal verdíssimo e me lembrei das pamonhadas que se faziam em Vera Cruz na minha adolescência, em tardes que reuniam famílias e colonos de várias fazendas e o cheiro do milho ralado e do curau subia das panelas, tão intensamente que permanece ainda hoje. Da escola agrícola de Santa Cruz não esquecerei jamais.

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