''Faço uma obra apurada por imperativo ético''

PUBLICIDADE

Por Camila Molina
Atualização:

ENTREVISTA - José Forjaz, arquitetoNascido em Portugal em 1936, mas radicado desde 1974 em Moçambique, o arquiteto, urbanista e designer José Forjaz passou sua infância no país africano e vem participando, há décadas, da reconstituição da ex-colônia portuguesa, emancipada em 1975. Profissional de atitude crítica, ele veio de Maputo a São Paulo para inaugurar a mostra José Forjaz - Arquitetura em Moçambique, em cartaz até 5 de junho no Museu da Casa Brasileira (que apresenta sua produção da década de 1960 até agora), e fazer palestras na USP.Atualmente trabalhando no planejamento de uma área de Luanda, capital de Angola, ao mesmo tempo em que cria projetos particulares, Forjaz, na semana em que seu conterrâneo Souto de Moura foi premiado com o Pritzker, recebeu o Estado para conceder a entrevista a seguir.Você nasceu em Coimbra, mas se mudou para Moçambique. Foi na África que decidiu ser arquiteto, apesar de ter se formado em Portugal?No fim dos anos 40, meu pai emigrou para Moçambique. Minha mãe ficou em Portugal, com três dos sete filhos e então foi se juntar a ele no princípio dos anos 50 e fui com ela. Em Moçambique, quando estava fazendo o ginásio, sempre gostava de desenhar, esculpir coisas. E depois a diferença entre a arquitetura de Moçambique com o velho Portugal de onde eu vinha era tão grande, que me entusiasmava. Por circunstâncias estranhas, também comecei a fazer desenho no Departamento de Obras Públicas de Moçambique. Foi muito bom, para fazer a transferência para Portugal, onde estudei, na Escola de Belas Artes do Porto.Nos últimos anos, uma de suas preocupações urbanísticas se refere ao tema das inundações, problema que temos também no Brasil. Seu interesse está relacionado ao desenvolvimento desordenado das cidades?É um problema quase universal. Pensar a arquitetura sem pensar a integração com seu contexto urbano ou natural é um erro. Hoje em dia, pensa-se muito a arquitetura como a criação de objetos que valem só por si, descontextualizados e, se quiser, até desurbanizados. Mas o problema mais fundo da cidade é a desorganização do espaço democrático, espaço socialmente válido. Por isso, as cidades, quase todas, têm muitas falhas. Na realidade, quem manda nas cidades são os políticos, os especuladores, são aqueles que tiram o melhor partido econômico. A cidade só se faz bem hoje se a população for esclarecida, que pode e deve definir o que quer. Há uma correspondência direta entre a qualidade do espaço e a consciência política.E como é em Moçambique? Aliás, o sr. já teve cargos públicos. Poderia falar sobre essa experiência?Temos lá um problema sério urbano. Primeiro, porque nossa população é predominantemente rural, portanto, não tem a consciência de ser urbana. Ainda, nossa estratificação social e econômica é muito forte. E terceiro, herdamos cidades coloniais formadas, dualistas, o que leva muito tempo para corrigir. Penso que estamos fazendo um esforço, pelo menos, pelo lado técnico. Pelo lado político, penso que há menos consciência. Três quartos das cidades moçambicanas são aquilo que vocês chamam de favela e nós, caniço. Fui diretor nacional de Habitação de 1977 a 1983 e secretário de Estado entre 1983 e 86. Mas depois penso que minha influência mais importante foi quando deixei o governo e assumi a responsabilidade da arquitetura e urbanística ao ser nomeado diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Maputo. Fui professor por 24 anos, mas, como diretor e mentor da escola, foi muito importante ter deixado uma maneira de pensar a arquitetura e urbanismo e planejamento para lá de teorias importadas, porque os mundos são muito diferentes.O sr. fala da necessidade de uma visão crítica?Sim, muito crítica, por isso mesmo, dificilmente adotada pelos políticos. Porque põe em causa muitas das atitudes que se adotam como as mais populares para os eleitores. E em nosso caso, mais de 70% são analfabetos. É muito difícil propor que a classe média conviva de forma pacífica com a favela. Há todo um jogo de cintura a fazer para poder propor um planejamento que aos poucos democratize os espaços.Qual a sua opinião sobre o prêmio Pritzker, dado ao português Eduardo Souto de Moura?Tenho uma opinião muito dividida sobre o prêmio Pritzker. Atribuem o prêmio a personalidades quase antitéticas em termos de ideologia. É um prêmio estranho, tornou-se o mais famoso do mundo, e, no entanto, há uma espécie de uma exposição muito heterodoxa. Não vou citar nomes, mas cobre o leque de figuras mais significativas da arquitetura, mas, quanto a mim, com grandes ambiguidades. Mas ainda bem que Souto de Moura ganhou! O prêmio tende a ser dado aos chamados "artistas arquitetos" mais do que aos "filósofos arquitetos".Acredita que exista mesmo uma onda minimalista nas últimas premiações do Pritzker?Acredito, mas que vem pelo lado errado, pelo lado da forma e não da necessidade da simplicidade, que é uma necessidade ética e política, se quiser. Acho que há duas atitudes que são diferentes: uma é ser minimalista, e portanto usar formas com proposições muito apuradas; outra é ser asséptico. Aquilo que sinto hoje sobre o minimalismo é que vai passar porque não tem densidade filosófica, intelectual para se aguentar contra outra moda. Eu faço uma arquitetura muito apurada também porque sinto que há imperativos de ordem ética para se fazer assim. Tudo que seja um "ismo" no fim faz grandes desconfianças. A não ser profissionalismo, palavra de que gosto muito.Qual sua relação com o Brasil? Há obras arquitetônicas que admira aqui?Há muitas. Um projeto como o do Ibirapuera é um dos momentos magníficos em que a cidade soube valorizar seu patrimônio natural, a arquitetura e o paisagismo. É único, penso, em todo o mundo. Mas, para mim, uma das figuras mais significativas da maneira de pensar democraticamente a arquitetura e que alia isso a uma capacidade de trabalho técnico é Lina Bo Bardi. Ela deveria ser de influência primária na atitude dos arquitetos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.