PUBLICIDADE

Faces do continente americano

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O escritor Marco Lucchesi apresenta a Antologia Pan-Americana, organizada por Stéphane Chao, que reúne 48 textos literários do continente americano, como "uma bela geografia de contos". Curioso que também Luis Gusmán tenha se referido à antologia argentina que organizou não como um a história, mas "uma fratura geográfica que não responde unicamente às condições dos exílios forçados". Para Gusmán, em outras palavras, teve fim o binarismo na literatura argentina sugerido pelo ensaio (de 1970) do historiador David Viñas, que reduziu a mesma ao eixo Buenos Aires-Paris (Sarmiento-Cortázar). Em ambos os casos, trata-se de ignorar fronteiras e passaportes. E, no particular de Stéphane Chao, agente literário e embaixador da literatura brasileira, de ignorar ainda mais a origem e a idade de seus eleitos. Há desde o premiado dominicano-americano Junot Díaz, do inventivo A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, saga de uma família perseguida por uma maldição, até o mais novo fenômeno da literatura americana, Jonathan Franzen, que em agosto ocupou as páginas dos cadernos culturais com seu Freedom, o diagnóstico mais cruel da classe média americana depois de Updike.Chao diz que prefere a geografia à história por uma razão simples: a geografia, segundo o agente, é literária. "Ela tem uma relação profunda com o mito, com sua atemporalidade fantástica, terreno onde se desenrolam as fábulas e narrativas primitivas, as grandes iniciações coletivas e individuais", justifica. Toda literatura seria, segundo essa lógica, "um devaneio geográfico". Assim, Chao ignora conceitos como América Latina e América Ibérica, ambos de natureza histórica, para criar uma antologia com novos códigos, em que cabem tanto o brasileiro Amilcar Bettega como o cubano José Manuel Prieto, passando pelo argentino Eduardo Berti.Claro que o caso Junot Díaz é especial, por se tratar de um verdadeiro "exilado linguístico". Seu tema central é a experiência do imigrante. Ele mesmo ficou morando com a mãe e os avós na República Dominicana enquanto o pai tentava a sorte nos EUA, onde desembarcou com seis anos (em 1974) e cursou a escola elementar. Isso explica por que Díaz figura entre os americanos (Richard Ford, Jonathan Lethem) e não ao lado do poeta dominicano José Acosta, que no conto O Efeito Dominó trata da violência latina que se volta contra si mesma. Acosta fala de um homem que perde as pernas após decepar as de um antigo parceiro de roubo. É um autor realista, não tão conhecido como Díaz, festejado nos EUA, mas parece estar a caminho de conquistar leitores.A antologia de Chao não se pautou por apresentar autores novos. Há muitos consagrados em sua seleção, alguns mortos, como o uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) e o argentino Juan José Saer (1937-2005). Do primeiro, o agente literário selecionou O Dezenove, conto curto, mas emocionante, sobre um sobrevivente dos tempos da repressão militar que consegue escapar com vida e volta para atormentar a consciência de um capitão do Exército. Benedetti é econômico. Em poucos parágrafos resume o paradoxo do continente latino, povoado de fantasmas que se comunicam com outros fantasmas, vítimas da própria ideologia. O argentino Saer, não menos conciso, conta, em A Esquecida, como um garoto de 15 ou 16 anos, em viagem de férias à França, esquece a irmãzinha de 5 anos no trem. Na história de separação entre irmãos, Saer identifica o familiar transfigurado no desconhecido (ele passou metade da vida na França).Os mais novos autores da antologia de Chao são o brasileiro André de Leones, de 30 anos, nascido em Goiânia e vivendo atualmente em São Paulo, e o guatemalteco Ronald Flores, de 37 anos. Ambos falam de violência em seus contos. Não poderia ser diferente. Afinal, estamos mesmo na América Latina.TRECHOS"As cadeiras, pernas para cima, estavam em cima das mesas. Güero passava sem muita convicção um rodo sujo e seco que revolvia sem remover a......terra do chão, enquanto Odilón, sentado atrás do balcão, mais uma noite aborrecido, fazia as contas do fechamento. Separou as notas em dois montes: as de aparência nova e as sujas, enrugadas por tanto manuseio... (Extraído de "Lontanaza", conto de David Toscana, do México) "Não sei por que me lembrei com tanta clareza justamente destes versos, do grande poema Maio, de Gorter..,...naquela tarde outonal, enquanto caminhava pelo calçadão de Scheveningen. Encontrava-me na Holanda há pouco...(Extraído de "Uma Coisa É Triste", conto de Frank Martinus Arion, de Curaçao) ANTOLOGIA PAN-AMERICANAEditora: Record (Org.: Stéphane Chao). 378 págs., R$ 49,90.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.