Poucos artistas no Brasil realizaram uma obra tão pessoal e corajosa como o gaúcho Rafael França, morto em 1991, aos 33 anos, em decorrência de complicações causadas pela aids.
Inaugurada na terça-feira, a retrospectiva Prelúdios: Rafael França, aberta até 15 de março na Galeria Jaqueline Martins, é uma prova do vigor de França como realizador de vídeos autorreferenciais, mas nem por isso marcados pelo narcisismo. Ao contrário. Neles, o eu é reduzido à dimensão mais ínfima do ser. A morte, a anulação do indivíduo numa sociedade que lincha o diferente, foi seu tema – e não é preciso lembrar que o HIV, no começo dos anos 1980, era chamado de “vírus gay”, como se um vírus tivesse moral e escolhesse suas vítimas por suas preferências sexuais.
Nos seis vídeos presentes na exposição, todos realizados no pico do flagelo que atingiu a comunidade homossexual nos anos 1980, questões como o suicídio, a solidão, o isolamento social e o corpo a corpo com a morte ocupam o posto principal na construção dramática de França. No vídeo de 1984, simplesmente chamado de Reencontro, um homem solitário confronta a própria imagem a exemplo do clássico personagem do conto de Edgar Allan Poe, William Wilson, como já observou o professor Arlindo Machado. Assim como William Wilson guarda certo paralelismo com a vida de Poe, com seu duplo arruinando a reputação do homônimo de Oxford, o personagem de Reencontro é um doppelgänger de Rafael França, que acaba se matando para escapar da ameaça do “outro”.
O gaúcho Vitor Butkus, curador da exposição e autor de uma tese de mestrado sobre França, chama a atenção para esse cruzamento entre vida real e ficção que caracteriza a produção em vídeo do artista, especialmente em três deles presentes na mostra. França estudou e trabalhou como pesquisador no Instituto de Arte de Chicago. Foi lá que realizou parcialmente Without Fear of Vertigo (1987), vídeo de 11 minutos sobre um jovem que se mata por causa de sua doença terminal, suicídio documentado por um amigo que é preso e julgado como cúmplice (o caso aconteceu, de fato, nos EUA). No vídeo, o realizador discute o suicídio com amigos brasileiros e americanos.