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Expiação e aventura picaresca

'O Intruso' (1948) e 'Os Invictos' (1962) marcam a excelência da literatura de William Faulkner

Por VINICIUS JATOBÁ
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Este mês se completaram 50 anos da morte do escritor americano William Faulkner (1897-1962) - e é como se ele nunca tivesse partido. Não apenas sua obra continua fartamente editada e traduzida, como sua influência na gramática narrativa pode ser encontrada em dezenas de autores, desde veteranos do porte de Mario Vargas Llosa (Conversação na Catedral) e Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão) e Kenzaburo Oe (O Grito Silencioso), até autores mais jovens como Orhan Pamuk (O Livro Negro), Ricardo Piglia (Respiração Artificial), Cormac McCarthy (Todos os Belos Cavalos) e mesmo o brasileiro Milton Hatoum (Relato de Um Certo Oriente). É possível afirmar que alguém que jamais leu uma linha sequer de Faulkner é, de algum modo, versado em seu trabalho por ler autores influenciados por ele. Não há que temer Faulkner: o selo Benvirá coloca agora nas prateleiras dois extraordinários romances dele, o sofrido O Intruso (1948) e o esfuziante Os Invictos (1962), seu último livro no gênero. Aliando-se a esses títulos a mesma editora anuncia para breve a trilogia Snopes (1940-1959); há, ainda, complementando a fartura de Faulkner nas livrarias do País, clássicos como Luz em Agosto (1932) e O Som e a Fúria (1929), ambos editados pela Cosac Naify. O universo de Faulkner é coeso. Após fundar o espaço ficcional em que toda sua obra relevante ocorre, o Condado de Yoknapatawpha, ele se dedicou a narrar a história privada do sul dos Estados Unidos: personagens humilhados pela derrota na Guerra Civil, marcados por questões raciais violentas, referendados como a parte brutalizada e ignorante da cultura estadunidense, mergulhados em uma profunda crise econômica e oprimidos por uma moral religiosa que se fanatiza nesse cenário de decadência. Seus romances e contos exploram um imaginário subtraído e sufocado, repleto de culpas e segredos e traições. Mais, até: escrevendo sobre personagens de diversas classes sociais, Faulkner opera um motor imensamente sofisticado; a violência do nefasto, do racismo, da misoginia e do fanatismo revela-se em todas as suas cores e discursos. A técnica de Faulkner é primorosa nessa seara: mestre na construção de narrativas parciais em que os valores dos narradores deformam a percepção do que realmente aconteceu, seus livros são mais sobre como as personagens veem o mundo ao seu redor, mais sobre o que pensam dos acontecimentos do que um engendramento especial de tramas. Em Faulkner, sempre vemos parte do que ocorreu, cerceados pelos muitos preconceitos e interesses dos narradores - e das personagens. Isso fica muito evidente nos livros abrigados na magistral trilogia centrada na família Snopes: O Povoado (1940), A Cidade (1957) e A Mansão (1959). O Povoado é o romance que fecha a década mais gloriosa e enérgica da literatura de Faulkner e ela contém a mesma prosa muscular e acumulada de romances exemplares como Absalão, Absalão (1936) e Luz em Agosto. Will Varner contrata para trabalhar em sua fazenda Flem Snopes, um forasteiro que chega à capital do contado, Jefferson, e logo cativa a população com suas atitudes. Faulkner conta uma jornada dupla: a decadência de Varner, um todo-poderoso local cuja fazenda perde a força após a Guerra Civil, e a ascensão e danação de Flem Snopes, que ao final do romance se torna um influente vendedor de cavalos, mesmo que para isso precise trair parceiros comerciais na cidade. Quando, quase duas décadas depois, o autor retoma o universo da família Snopes, A Cidade e A Mansão trazem elementos diferentes: há o mesmo senso de macabro e de vício de O Povoado, mas Faulkner já era então o grande Faulkner - um Nobel, estabelecido e elogiado - e a própria temperatura da realidade sulista havia mudado com o início das lutas de igualdade de direitos civis. São livros mais bem-humorados e jocosos, que trazem entre os narradores três de seus personagens mais famosos: VK Ratliff, Chick Mallison e Gavin Stevens. No final de A Mansão, Flem paga pelos crimes cometidos em O Povoado, reforçando o mote essencial do universo de Faulkner de destino e fatalidade. Todas essas reflexões sobre os Snopes aqui tecidas nos levam de volta à dupla de romances recém-editados pela Benvirá. O Intruso reforça aquela visão de expiação tão evidente no universo de Faulkner: Lucas Beauchamp, um ex-escravo que se torna fazendeiro, é encontrado desacordado com uma arma na mão e com um cadáver próximo. É o bastante para que a população deseje seu linchamento público. Chick Mallison, personagem recorrente, luta para provar a inocência de Lucas, mas logo encontra a realidade - não importa se é ou não inocente; ele é um negro, e isso basta para provar sua culpa e merecer ser punido. Os Invictos é o mais divertido dos livros de Faulkner, a melhor vacina contra o temor em lê-lo: após roubarem um automóvel, três jovens amigos partem para uma aventura picaresca ao longo do rio Mississippi. Faulkner claramente se divertiu escrevendo o livro, homenagem declarada a Huckleberry Finn e Tom Sawyer. O romance constrói uma narrativa de iniciação em que o leitor pode aprender com luxo de detalhes tudo sobre assaltos a carros, cavalos e potros, fugas da polícia em alta velocidade, prisões bolorentas e bordéis ruidosos - da maneira mais irresponsável, criminal e generosa possível. VINICIUS JATOBÁ É CRÍTICO E ESCRITOR

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