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Exemplo de tradição bem temperada

Eva Yerbabuena mostra a mescla de influências que o gênero assimilou ao longo de sua formação

Por Agencia Estado
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Mesmo sendo a dança do ventre a bola da vez, no efeito Jade que impera no Brasil também na maquiagem e na moda, o flamenco ainda mantém seu terreno, expandido e consolidado pela hoje histórica trilogia do cineasta Carlos Saura com o bailarino Antonio Gades: Bodas de Sangue (81), Carmen (83), e O Amor Bruxo (86). Lá, no olimpo pop onde passou a habitar, viu seu mercado crescer e passar a abrigar muitos trabalhos sem raízes sólidas _ quase todos continuidades do que sucedeu durante a ditadura do general Franco, quando as críticas sociais dos cantos mineros foram proibidas, reduzindo tudo a lamentos de mortes familiares e perdas amorosas. Flamenco é mesmo mistura. O próprio povo espanhol vem de uma, que começou no século 5.º entre celtas, fenícios, gregos, nativos de Cartagena, romanos, vândalos, visigodos e mouros. Sempre presente, a miscigenação se mantém como o eixo dessa dança. O espetáculo do Ballet Flamenco Eva Yerbanuena, estreado na quinta-feira, no Teatro Municipal de São Paulo, e que volta à cidade desta sengunda-feira até quarta, no Teatro Alfa, ressalta isso já no seu nome, que honestamente associa balé e flamenco, tornando-se assim um ótimo objeto para essas reflexões. Basta olhar com atenção para o próprio corpo de Eva Yerbabuena e de seu elenco. Neles se vê o embate que marca o flamenco hoje, quando o ensino deixou de acontecer dentro das famílias tradicionais, em ambiente de preservação _ como, aliás, sucede a todas as outras danças dessa mesma natureza. Quem lembrar dos Pericets, por exemplo, será imediatamente capaz de entender que o que falta a Eva Yerbabuena em relação àquele modelo não está disponível ao mundo do consumo de massa que ela tão bem representa. No seu corpo, o flamenco dialoga com tudo o que não fez parte das suas miscigenações históricas e representa o inevitável. Afinal, todos os organismos vivos estão vivos enquanto resultados transitórios de processos de permanente transformação. O que conta aqui, portanto, não é a fidelidade _ inexistente como proposição em arte, na verdade _, mas para onde esse espetáculo aponta. Que Eva Yerbabuena parece dedicar-se a assinar algo como seu, isso parece claro. Talvez um algo como uma dramaturgia do gesto flamenco que seja capaz de acontecer nos corpos contaminados por outras técnicas como, de resto, sucede a toda a dança que se produz hoje. Os contágios estão explícitos em todos os cantos, além dos corpos que dançam, e escancarados no trabalho de cenografia de Hansel Cereza e de direção musical de Paco Jarana. Cereza, em especial, demonstra familiaridade com as atuais concepções de espaço cênico, realizando bem o trânsito dos sfumattos do flamenco para o claro-escuro da dança contemporânea. Parece ser a ambição também, mas ainda não atingida, de Eva Yerbabuena. Um dia, quando se conseguir sonorizar bem as palmas (pasteurizadas exatamente no que lhes abre a possibilidade de maestria, e que é a competente exploração das suas tonalidades) e os tacones (empobrecidos nas suas dinâmicas, praticamente reduzidas a pianos e fortes pela amplificação chapada), o flamenco terá aliados preciosos na sua saga de sobreviver em tempos modernos sem desfigurar-se.

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