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Eva e as relações de poder no casal

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Por Redação
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Por volta de 1960, Joseph Losey começou a recuperar sua identidade. Após deixar os EUA, vítima da lista negra do macarthismo, ele retomara a carreira na Europa, mas tivera de se esconder por trás de pseudônimos. Em 1959, fez Entrevista com a Morte; e, logo, Armadilha a Sangue Frio. Ressurgiu do limbo como grande autor, mas ainda seria preciso esperar por O Criado ? e pelo encontro com o dramaturgo e roteirista Harold Pinter, em 1963 ? para que a nova fase fosse cristalizada. Em 1962, houve Eva.O filme adaptado do livro der James Hadley Chase era projeto dos irmãos Hakim, que queriam Jeanne Moreau como protagonista. Eles viam o filme como um thriller. Losey o via como algo mais. Para ele, Eva deveria ser um complexo estudo sobre as relações de dominação e submissão do casal moderno. O nome da protagonista, a primeira mulher, não era acidental. Eva é uma prostituta que se liga a Tyvian. O escritor é interpretado por Stanley Baker, um dos atores fetiches do diretor (na fase anterior a Dirk Bogarde). Tyvian é uma fraude ? assinou o livro escrito pelo irmão que morreu e agora vive como um fantasma de si mesmo.O filme passa-se em Veneza, cidade berço do capitalismo. Eva é voraz, o dinheiro não lhe é apenas necessário, é essencial em sua vida (talvez porque tenha de vender o corpo para consegui-lo). Entre Eva e Tyvian existe Francesca, mas a jovem e delicada Virna Lisi não tem condições de oferecer resistência à personagem de Jeanne Moreau. Por conta de divergências "artísticas", Losey passou toda a filmagem brigando com os produtores. Jeanne, a grande estrela europeia da época, o apoiou, menos no final que ele queria (e terminou não filmando). Jeanne havia sido solidária o tempo todo. Losey disse que não poderia brigar com os produtores e com ela, ao mesmo tempo. Tentem ver o filme com o desfecho que ele queria. Eva parte com um amante ocasional. Antes de entrar na gôndola, grita para Tyvian: "E não se esqueça de dar comida ao gato." A gôndola, a propósito, é sempre símbolo de morte.Losey foi visitar Jeanne Moreau para lhe explicar o roteiro. Ela ouvia um disco de Billie Holiday. O cineasta havia conhecido a cantora no começo de sua carreira. Uma aterradora sensação de solidão a cercava, como ele definiu. Losey incorporou Billie à trilha e o livro que Eva lê é a biografia da artista. O público não percebe, mas, como ele dizia, era importante que assim fosse. Losey havia se iniciado no teatro com Bertolt Brecht e foi um dos raros (grandes) diretores que incorporaram o conceito do distanciamento crítico a um meio tão refratário a ele quanto o cinema.Detalhe. Todo o mistério de Eva se opera nos lentos movimentos ritualísticos da câmera de Gianni di Venanzio (e de Henri Decae, nas cenas do Festival de Veneza). O universo do filme é fechado, como Losey gostava. Um detalhe é essencial: os ovos decorativos, como símbolos do masculino e do feminino, espalhados pelo filme. Eva, a personagem, é dominadora e cruel, mas dá a Tyvian mais do que a qualquer homem de sua vida. O filme foi remontado pelos produtores, à revelia do autor. Algumas cenas foram incorporadas posteriormente, mas nunca ninguém viu a Eva completa de Losey, que o diretor considerava sua obra-prima e, sem modéstia, um dos maiores filmes de todos os tempos. / L.C.M.

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