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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|'Eu sou de um país que se chama Pará'

Atualização:

BELÉM - Quando a mediadora Renata Ferreira disse que o meu conto o homem que viu a osga comer meu filho a tinha aterrorizado, assustei-me. Não tenho este conto. Ela riu e explicou: "O que vocês chamam de lagarto ou lagartixa, chamamos de osga. Aliás, está no Aurélio". Estava certa, o conto existe. Quando ouvi a fotógrafa Elza Lima contar uma história minha em que os olhos dos cavalos do carrossel de meu avô eram petecas, reagi: "Como petecas? Eram bolas de gude". Elza: "Pois aqui, petecas são as bolas de gude". Caminhava pelo Espaço Palmeira, um feirão popular, no centro da cidade. Aqui foi uma tradicional fábrica de bolachas, biscoitos e doces, fundada em 1892. Demolida, restou uma área de piso concretada sobre a qual se armam as barracas. Então, ouvi: "Vamos fazer nossa sombra aqui", disse o mulato de chapéu branco. E sentou-se com dois amigos num canto. Não havia sombra alguma, ao contrário, era um solão, mas gostei da expressão. Porque grande e diverso é o Brasil. Vim para a 17.ª Feira Pan-Amazônica do Livro, que no ano passado vendeu 850 mil livros, me contou Paulo Chaves Fernandes, secretário de Cultura, arquiteto que criou as Docas e o Mangal das Garças, imperdíveis. A Pan-Amazônica deste ano termina no próximo domingo com Affonso Romano de Sant'Anna. Pelo palco principal passaram Ziraldo, Tony Bellotto, Cristovão Tezza, Guilherme Fiuza, Tiago Santana e José Castello. Para terem ideia, o folheto com a programação tem 74 páginas com oficinas, seminários, aulas, lançamentos, mesas-redondas, salão do humor. Tudo acontece no Hangar, um centro de convenções moderno e funcional. Ao falarmos, temos à nossa disposição auditórios variados que vão de 300 a 1.500 espectadores. Distante daqueles espaços fechados por divisórias de eucatex da Bienal do Livro de São Paulo, onde a barulheira do salão penetra e ninguém ouve o que se fala. Lembrei-me que estive na primeira Pan-Amazônica, ainda no centro, sufocada, apertada, mas cheia de gente. Assim como me lembro de uma casa de sucos da terra, onde havia um de pinha que era puro regalo. A casa fechou, virou loja. Por outro lado, nas sorveterias você mergulha a colher em taças de sorvete de tapioca (deslumbrante), buriti, bacuri, cupuaçu, açaí, graviola, manga. Quem me indicou a Cairu como o melhor sorvete da cidade foi Fafá de Belém. Opinião considerável. O Pará é terra da Fafá, da Gaby Amarantos, da Dira Paes, da Olga Savary (que está na cidade em que nasceu, emocionada, há muito não vinha), Leah Soares. E de Dalcídio Jurandir, um dos grandes escritores brasileiros de todos os tempos.A feira deste ano foi dedicada a Ruy Barata, poeta, compositor, jornalista, político progressista, ícone paraense, homem que navegou em todas as águas. Dele é a frase epígrafe desta 17.ª Pan-Amazônica: "Eu sou de um país que se chama Pará". Milhares de crianças vagando entre centenas de estandes. Perguntando: "O senhor é escritor?". Correndo atrás do Ziraldo, que se intitula "o velhinho maluquinho". Vi Ziraldo, com tremenda luxação no ombro, cheio de dores, sentar-se e autografar centenas de livros. Mais do que profissional, ele ama o que fez e adora ver a meninada em torno. Certa noite, fomos jantar nas Docas, olhando o rio de frente. Chegavam homens feitos querendo tirar uma foto com o "menino maluquinho". Chegavam também jovens querendo uma foto com Tony Bellotto, que tinha acabado de fazer uma bela fala sobre seu romance Machu Picchu. Depois, elas viravam para mim: "E o senhor é alguma coisa?". Respondi com a maior seriedade: "Não, sou apenas pai do Bellotto". E elas: "Não precisamos tirar fotos do senhor, não?". Felizes com minha negativa, partiam, ruidosas, enquanto voltávamos ao filé de filhote, peixe delicioso, com risoto de pupunha e jambu, e ao pato com tucupi. Belém é sabor e é necessário comer, de preferência à noite, no Mangal das Garças, parque nascido à beira-rio, cheio de pássaros, tartarugas, borboletário. Iguanas verdes, figuras pré-históricas, vagueiam pelos gramados.Tomei um avião e cheguei a Marabá 50 minutos depois. O nome da cidade vem de um poema de Gonçalves Dias. Região ligada à siderurgia e celebrizada pela Serra Pelada. Estudantes e professores se juntaram no Cine Marrocos para conversar com escritores. É a Pan-Amazônica expandida. A feira não acontece apenas em Belém, vai ao interior, agrega, abre-se às populações. A ideia avança pelo Brasil. A fotógrafa Elza Lima me contou que esta "feira fora de feira" nasceu após a leitura de uma crônica, aqui, minha no jornal, falando de Fortaleza, da bienal fora da bienal, quando autores vão aos bairros e às cidades do interior. Andressa Malcher, coordenadora, apanhou a ideia no ar e desenvolveu.Sentei-me no palco ao lado de Ademir Brás, jornalista, advogado e poeta de primeira linha. Ele descreve sua terra, a gente, as paisagens, o Rio Tocantins, manso e largo, silencioso. Pequenas casas coloridas inclinam-se para as águas. A poesia de Ademir oscila entre a ternura e a indignação, com ritmo e afeto. Por ele e pelos jovens, soube do Pará. E contei das coisas de cá. Por que tanta gente de talento como Ademir não chega ao Sul? Onde fica o muro que nos separa?

Opinião por IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
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