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Eu e a gendarmerie

Quem falaria em nome dos escritores seria - eu! Fugir era impossível

Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

Não sei se já contei isso. Eu fazia parte de um grupo de escritores convidados para uma feira de livros em Montpellier. Chico Buarque, Milton Hatoum, Tabajara Ruas, Charles Kiefer, Betty Mindlin, devo estar esquecendo alguém. Na chegada, nos informaram que Gilberto Gil, então ministro da Cultura, falaria na solenidade de inauguração da feira em nome do governo brasileiro (era o ano do Brasil na França) e quem falaria em nome dos escritores seria - eu! Fugir era impossível, simular um enfarte ou a súbita perda de voz seria ignóbil. Lá fui eu para o palanque, em pânico. Não adiantaria dizer que, cada vez que eu falo francês, a Academia Francesa faz uma reunião de emergência. Haveria um intérprete, eu poderia falar na minha língua materna, embora toda vez que eu faço isso ela negue o parentesco. As autoridades locais discursavam, o Gil discursava (em francês perfeito) e eu suava. 

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Me lembrei da recomendação dada às mulheres de diplomatas britânicos em missão no exterior: se o estupro é inevitável, relaxe e pense na Inglaterra. Não ajudou. Pensei: talvez, quando chegar a minha vez, o palanque desabe. Seria sorte demais. Decidi que o jeito era bolar alguma bobagem para dizer. Era uma daquelas ocasiões em que qualquer bobagem serve ou é preferível a um silêncio catatônico. E traduzida para o francês, qualquer bobagem soa bem. Mas que bobagem? Na época, aquela francesa sequestrada por terroristas no Iraque ainda estava presa. Um grande cartaz com seu rosto dominava a praça central de Montpellier onde se realizaria a feira e os pais da moça participavam da solenidade. Ali estava um mote. A cultura contra o terrorismo. Os livros contra a barbárie. Um oásis de razão num mundo insensato. Alguma coisa assim. Quando chegou a minha vez, fui para o microfone - depois de resistir a um último impulso de pular do palanque e sair correndo - e o intérprete se postou ao meu lado. Eu disse que aquele evento era uma celebração do poder do intelecto em contraste com as forças do mal, ou coisa parecida. E lembrei o famoso episódio da Guerra Civil Espanhola em que um general franquista terminou um discurso inflamado gritando “Abaixo a inteligência, viva a morte” e provocou uma reação indignada do velho Miguel de Unamuno. Terminei o meu discurso dizendo “Abaixo a burrice, viva a inteligência!”. Virei-me para voltar ao meu lugar enquanto o intérprete traduzia a última frase, e ouvi uma ovação. Epa, pensei. Minha frase fez sucesso. Sou melhor orador do que eu pensava. Levantei a massa! 

Depois, avisaram ao intérprete que ele tinha se enganado na tradução. Ele se desculpou comigo e, em seguida, corrigiu seu erro para o público. Eu tinha dito “abaixo a burrice” - não “abaixo a polícia”. Grande decepção do público. Eu não era, afinal, um celerado anarquista. Quando desci do palanque, notei que alguns “gendarmes” me olhavam feio. E até hoje não sei o que a população de Montpellier tem contra a sua polícia.