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Estudo revela compreensão inovadora da obra de Machado de Assis

José Luiz Passos arrisca um largo passo atrás, a fim de recuperar a potência inicial do gênero romance

Por João Cézar de Castro Rocha
Atualização:

 

No sentido amplo da palavra, Romance com Pessoas é um livro excepcional.

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De um lado, José Luiz Passos desenvolve uma leitura marcante do conjunto da obra de Machado de Assis, com destaque para um entendimento inovador de seus nove romances. De outro, seu ensaio distancia-se radical e deliberadamente dos métodos dominantes no estudos literários, em geral, e dos estudos machadianos, em particular.

Vejamos como se reúnem as duas excepcionalidades, esclarecendo a força da original análise da "imaginação em Machado de Assis". Passos guia o leitor, explicitando seu projeto: "a despeito da imensa variedade de perspectivas sobre o autor, ainda não dispomos de um vocabulário conceitual sensível para descrever as principais situações narrativas que ele nos propõe".

O propósito do ensaio é precisamente esboçar tal vocabulário. Porém, o caráter fragmentário do livro não deixa de ser desconcertante. Ele é composto por uma instigante colagem de breves estudos de personagens e situações ficcionais, além de notas reveladoras acerca de fontes tanto de Machado quanto de Passos: aqui incluídos os nomes de Santo Agostinho, David Hume, John Locke, e, claro, à frente de todos, William Shakespeare.

Ciente do risco, no instante "Pessoas", o autor se converte em autêntico Virgílio, assumindo o papel de condutor da leitura: "A meio caminho deste ensaio, é tempo de fazermos uma pequena revisão (...). O que significa dizer que um romance é sobre a pessoa humana? Procurei defender a noção de que os romances de Machado são sobre o modo como indivíduos conduzem suas vidas".

Destaque-se a ousadia da empresa. A escrita ensaística de Passos parece muito mais próxima da imaginação crítica de um Edmund Wilson e de um Lionel Trilling do que dos arrevesados debates contemporâneos.

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No fundo, o autor arrisca um largo passo atrás, a fim de recuperar a potência inicial do gênero romance. Perfeitamente expressa, aliás, no programa de Henry Fielding, definido no Tom Jones (1749): "o Exemplo é uma forma de Retrato, no qual a Virtude aparece como se fosse um Objeto Visível, e nos surpreende com a Ideia daquele Encanto que, segundo Platão, encontra-se presente na Virtude em si mesma". Se a filosofia – ou a teoria da literatura, sussurra o autor – traduz em conceitos a matéria vital, a literatura nela se constitui, oferecendo ao leitor um espelho que, ao ser atravessado, devolve-lhe uma imagem mais nítida de sua dimensão propriamente moral. Eis como Passos a entende: "autoexame deflagrado pela suspeita dos motivos alheios".

Em tom menor, a mesma vocação existencial foi retomada pelo narrador proustiano: "assim muda nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores, mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação". Passos inventa sua aposta pascaliana: a literatura possui um valor epistemológico fundamental, embora negligenciado nas últimas décadas. Trata-se do sentido existencial inerente ao ato de escrever e, sobretudo, de ler ficção. Daí, a pertinência da pergunta que soa improvável aos ouvidos críticos coevos: "saber se o romance pode nos tornar melhores pessoas". Na perspectiva aqui delineada, a pergunta nada tem de ingênua.

Pois bem: como se não bastasse, Passos valoriza um conceito que a crítica brasileira transformou num Judas em sábado de aleluia: "Proponho que, seguindo uma sugestão de John Searle, façamos do realismo uma prática que nos oferece a extensão imaginada do nosso conhecimento e de nossas crenças sobre nosso próprio mundo".

O gesto se impõe, pois é preciso assegurar uma ponte entre o ato de leitura e o autoexame, as dissimulações, os cálculos e as desilusões dos personagens machadianos. Então, e o achado revela o escritor, romance com pessoas. No texto, claro está, mas também do outro lado: ler uma narrativa, ensina Passos, também é ler-se a si mesmo. Esse caminho de torna-viagem é o percurso por ele iluminado.

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E há mais: uma análise inspirada da gênese do personagem Brás Cubas, visto como um compósito de personagens dos romances da chamada primeira fase. Ainda: páginas bem pensadas acerca da centralidade de Shakespeare na literatura e na visão do mundo de Machado. Não é tudo: a exemplo do que fez Wolfgang Iser em seu estudo sobre Laurence Sterne, Passos constrói seu entendimento da ficção em diálogo com Hume e Locke, sublinhando a relevância da noção de empatia.

José Luiz Passos realizou uma façanha crítica: muito jovem, já construiu um espaço só seu. Território generosamente franqueado ao leitor que decidir acompanhá-lo nessa bela ruptura em que o alarde é substituído pelo senso cavalheiresco, quase aristocrático, da exata proporção.

JOÃO CÉZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ E AUTOR DE ‘MACHADO DE ASSIS: POR UMA POÉTICA DA EMULAÇÃO’

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