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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Estrelas

Atualização:

Estranho me ver sozinho sábado numa cama de hospital, "leito", num quarto que chamam de Observação 4, com pulseira e pulsão no pulso, à espera da ressonância, que dirá se é grave, se serei operado, se meu rim pifou, e terei que mudar a rotina da minha vida, se é culpa de um cálculo, se o cálculo se desfez, se passeia meu corpo, onde ele está, no ureter, na bexiga? Logo hoje, sábado, resolveu sumir, se desfez, era de ureia ou cálcio? Estava comigo há décadas. Em todos os exames de rotina, lá estava ele, a manchinha branca no rim esquerdo. Avisei a mocinha do ultrassom: "Tem uma pedrinha aí que não muda de tamanho nem sai do lugar". Mas sumiu. Ligou para meu médico, que me internou. Mais exames. Todos os exames. Não descansaremos até encontrá-la. Me perguntaram se eu preferia homem ou mulher para introduzir uma sonda de alívio na uretra. Tanto faz. Vieram enfermeiras que reclamaram da nota do Prouni. Tive uma ligeira ereção quando fizeram a limpeza com gazes, antissépticos, mais gazes, xilocaína e gazes. Pedi desculpas pelo momento inapropriado e perguntei se "aquilo" atrapalharia. Riram da minha ignorância e presunção: "O buraquinho é o mesmo. Estamos acostumadas, sabemos que é reflexo". Quem disse? Achei engraçado: mentirinha masculina predomina num procedimento hospitalar. Ensinaram que é só reflexo. Ninguém contou que é gostosinha aquela manipulação? De repente, vupt! Entra sem dó, sem escalas, um tubo que percorre minha uretra, passa por trás da próstata e, chuá! O susto é surpreendido pelo alívio. Ligaram a TV, apagaram a luz e me deixaram com um cobertor. Fazia frio na sala. Desolador. Começava um programa sobre Fernando de Noronha com a Angélica. Bonita. De bermudinha jeans, mostrava algumas praias incríveis. Entrevistava Dani Winits e o músico Chay Suede, que tocou um violão. Pessoas bonitas, saudáveis, talentosas. O famoso Zé Maria, dono de uma pousada, colhia tomate, mandioca e limão plantados na ilha. Faziam um peixe fresco com a chef Vivi Gonçalves, enquanto falavam dos planos de suas vidas incríveis. O programa se chama Estrelas. Todos brilham na tela, nos nossos olhos, explodem como uma Supernova. Invejamos todos os blocos do programa. Pesquisei pra saber se Chay era parente do lendário colunista Ibrahim Suede, que ia às boates de NY, ficava ao lado de celebridades, dava ordens ao fotógrafo e publicava na coluna, como se fosse amigo da estrela: "Nosso Colunista com Brooke Shields"; "Ibrahim e Elton John na night". Chay Sued é nome artístico. É um artista. Eles lá, eu cá. Não conhecerei Fernando de Noronha tão cedo, nunca andarei por aquelas areias, nunca nadarei com golfinhos naquele mar transparente. Por que exibem isso hoje, em que estou sozinho com sonda, medo e dor, no Observação 4? Para quem exibem o momento de tanta beleza? Para invejarmos ou apreciarmos? Ah, assim vivem as estrelas, os ricos, os artistas, ou é mentira, uma ilusão? Flávio Canto esteve no programa e disse: "Aqui é um paraíso. Adoro essa ilha!". Ele adora, ele vai sempre! Mariana Ximenes esteve lá. Grazi Massafera também. São loiras, são lindas, são bem-sucedidas, são melhores do que nós. Imaginei a fila de cadeirinhas de rodas de crianças da AACD vendo aquilo, ou presidiários de Pernambuco, prostitutas de Parauapebas, um grupo num quilombo, garimpeiros em folga, um bêbado solitário do centro de São Paulo, descobrindo que existe um mundo tão distante do nosso, em que tem água, paz, sol, ar puro, e como são felizes as pessoas da TV, devem ser felizes, estão felizes, aparentam estar felizes. Estamos todos vendo vocês, torcendo por suas carreiras, pelo seu sucesso. Adoraríamos estar com vocês, curtir com vocês. Infelizmente, não podemos. Dos candidatos ao Oscar, existem dois filmes inteligentíssimos, Birdman, do Alejandro Iñárritu, e o argentino Relatos Selvagens, do Damián Szifrón. Szifrón mostra personagens comuns que perdem o controle e partem pra vingança, apesar do contrato social exigir serenidade e perdão. Vai concorrer ao Oscar de filme estrangeiro com o filme russo, Leviatã, um pouco óbvio: referência pós-URSS ao livro Leviatã, de Thomas Hobbes, que popularizou o ditado pré-socrático "homo homini lúpus" (o homem é o lobo do homem); sem um estado forte, absoluto, centralizado, os homens se destroem. O cartaz é a carcaça de uma baleia encalhada. Um império todo-poderoso ou um submarino nuclear se deteriorando. Iñárritu fez um filme que parece um plano-sequência, com uma trilha que é o solo de uma bateria. Fez arte inigualável, para protestar contra o rumo da própria indústria de entretenimento. Em Birdman, um ator que ficou famoso na franquia de um super-herói que voa, Birdman 1, 2 e 3 (Michael Keaton, que fez Batman em 1989 e Batman Returns em 1992), desiste de fazer a versão 4. Vai para a Broadway adaptar, dirigir e atuar num drama baseado num conto de Raymond Carver. Quer provar que é, sim, um grande ator. Aluga o teatro em cujo palco esteve Marlon Brando. Contrata gente de teatro, como Mike Shiner (Edward Norton). Teme a crítica do New York Times, que, certamente, vai demolir a peça. Mas anda pelas ruas, e o povo só quer saber de Birdman. Eu tenho popularidade, minha vida afetiva é um desastre, mas eu posso e quero mostrar que sou mais. O próprio super-herói olha para nós, espectadores, e nos pergunta se o preferimos em um sucesso garantido ou num teatro. Popularidade ou prestígio, cultura digerível ou arriscar? Raymond Carver morreu em 1988. Na sua tumba, está escrito: "And did you get what you wanted from this life, even so? I did. And what did you want? To call myself beloved, to feel myself beloved on the earth". (E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? Consegui. E o que você queria? Me considerar amado, me sentir amado nessa terra.) Ninguém achou a minha pedra. Recebi alta duas horas depois. Retomei a vida de gente comum, preocupado com a crise hídrica e o avanço do EI. Esqueça do jabá de Fernando de Noronha. "Popularidade é a prima promíscua do prestígio", define o personagem Mike de Birdman.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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