Estréia superprodução de "Rei Lear"

O diretor Ron Daniels procura adaptar a poderosa métrica de William Shakespeare à musicalidade da fala brasileira

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Por Agencia Estado
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A tragédia do rei Lear, que provoca sua desgraça e a da nação que governa ao partilhar seu reino de forma irresponsável entre duas filhas, ganha, a partir dessa quinta-feira, um indisfarçável ritmo brasileiro na cadência de seus diálogos. Com Rei Lear, que estréia no teatro do Sesc Vila Mariana, o diretor Ron Daniels buscou adaptar a poderosa métrica de William Shakespeare à musicalidade da fala brasileira. "Shakespeare é contagiante e deve ser entendido por todos", comenta o diretor, que assumiu a tarefa da tradução do texto, a princípio a cargo da crítica Barbara Heliodora. "Seu trabalho era maravilhoso, mas muito literário; não gostaria que ninguém recorresse ao dicionário depois do espetáculo; por isso fiz uma tradução livre, menos fiel que as outras." A preocupação com o texto é apenas um dos detalhes da superprodução, orçada em R$ 1,2 milhão e envolvendo 130 pessoas, dos quais 25 atores. À frente do elenco, e também como produtor, Raul Cortez interpreta o octogenário rei que, em quatro atos, percorre uma tortuosa trajetória, da perturbação emocional até atingir a "razão da loucura", como observa um dos personagens, Edgar. Aos 68 anos, 44 deles dedicados a uma sólida carreira no teatro e na televisão, Raul Cortez alimentava o desejo de montar Lear desde 1997. A razão não é facilmente explicável - "Não sei apontar realmente o motivo dessa vontade, apenas digo que segui minha intuição." Além de suas qualidades cênicas (belo timbre de voz, respiração perfeita, inflexão sob domínio permanente), o ator encantou Ron Daniels justamente por essa intuição. "No Brasil, há algo maravilhoso nos palcos que não ocorre na Inglaterra: a entrega total ao texto", comenta. "Há momentos em que o ator atinge um estágio inalcançável pelo diretor: quando deixa de ser ator e passa a ser realmente o personagem." Assumir a direção de um espetáculo shakespeariano interpretado por Cortez tornou-se algo natural para Daniels - juntos, encenaram Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues, em 1960 e depois, no Oficina, Os Pequenos Burgueses (1963, de Gorki). Em seguida, Daniels rumou para Londres, onde construiu uma bem-sucedida carreira, dirigindo, durante 15 anos, a Royal Shakespeare Company, período em que encenou 39 montagens de peças do bardo, como ator ou diretor, na própria Inglaterra, nos Estados Unidos - onde vive atualmente - e até no Japão. Reaproximação - O reencontro foi promovido pela filha de Raul, a atriz Lígia Cortez, que convidou Daniels para um workshop, em 1998, no Teatro Escola Célia Helena. "Eu já alimentava a idéia de interpretar Lear e aproveitei a reaproximação para convidá-lo a dirigir", conta o ator. Convite aceito, Daniels começou a fazer sua versão do texto e realizar testes para formar elenco enquanto Cortez buscava patrocínio, acertado com a Volkswagen do Brasil. Era o início também do aprofundamento do texto, promovido por Daniels. "A cada ensaio, descobríamos uma força nova das palavras, das frases", lembra a atriz Lu Grimaldi, que interpreta uma das filhas de Lear, Goneril - os demais papéis são de Lígia Cortez (a cruel Regane) e Bianca Castanho (a leal Cordélia). O desenvolvimento cênico entusiasmava também o diretor. "Minha função era a da ausência criativa, ou seja, incentivar o ator a encontrar a personalidade de seu personagem." Daniels manteve ainda um contato intenso com o cenógrafo J.C. Serroni, participando da elaboração do cenário. Três estudos resultaram em um maquinário engenhoso, em que um grande portal representando a realeza do primeiro ato "tomba" sobre o palco para ceder lugar à tempestade que Lear enfrenta no fim do segundo e terceiro atos. Em seguida, no estágio denominado "pós-tempestade" por Daniels, o palco encontra-se vazio, com torres laterais de metal, remetendo à estrutura do próprio teatro - que também passa a ser uma referência contemporânea à nossa cena urbana. Completam o elenco Gilberto Gawronski (Bobo), Caco Ciocler (Edgar), Rogério Bandeira (Edmundo), Luiz Guilherme (Kent), Leonardo Franco (Duque de Albany), Mário Borges (Duque de Cornuália) e Mário César Camargo (Glócestes).

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