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Estação da Luz completa 100 anos em março

Por Agencia Estado
Atualização:

No próximo dia 1.º de março a Estação da Luz completará 100 anos. Não foi a primeira estação ferroviária de São Paulo, pois já havia uma outra ao lado, inaugurada em 1867, já saturada naquele momento. As comemorações desse centenário naturalmente ressaltarão as qualidades arquitetônicas da 1.ª estação ferroviária de grande porte da América do Sul. Pouco se falará, entretanto, do valor simbólico que representava na época aquela sacralização da estação ferroviária enquanto um verdadeiro templo dos transportes. Sua construção significou a monumentalização de um espaço altamente utilitário de embarque e desembarque de passageiros, seguindo uma tendência iniciada na Inglaterra. O relógio na torre pairando acima dos campanários das igrejas representava a supremacia do pragmatismo econômico sobre a religiosidade barroca, até então traço dominante da paisagem paulistana. A gratidão e veneração à tecnologia era total ? a ferrovia havia mudado radicalmente a cidade. Durante os três primeiros séculos de colonização, a Serra do Mar era uma barreira dificílima de ser transposta. Quem hoje se lamenta dos congestionamentos por lá, talvez se console com este relato do Padre Anchieta sobre a serra, no século 16 : ?Vão lá por umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se, e por ser o caminho tão mal e ter ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos.? Nesta época, o viajante que quisesse ir da Baixada Santista para São Paulo ia de barco pelos canais até o sopé da serra. Aí abriam-se dois caminhos: mais ao norte havia a subida a partir de Piaçaguera (porto velho em tupi) em direção ao vale do rio Mogi, e o outro ia até o porto de Santa Cruz na encosta da serra e daí para o vale do rio Perequê. O caminho mais ao norte, pelo vale do do rio Mogi, era o mais usado pelos tupiniquins e pelos portugueses. Porém, a partir da fundação da cidade de São Paulo, em 1554, os tamoios, inimigos dos portugueses e dos tupiniquins, habitando neste tempo no litoral norte e no vale do Paraíba, passaram a atacar os viajantes ? começa então a ser mais utilizada a trilha pelo rio Perequê, melhorada sob a orientação de Anchieta e mesmo modificada em alguns trechos do planalto. Além da subida da Serra do Mar, havia outras dificuldades nessa rota, conhecida como Caminho do Padre José, numa referência a Anchieta. Depois de dois dias de viagem e uma vez alcançado o planalto, o viajante, já inchado pelas picadas dos borrachudos do vale do rio das Pedras, tinha de enfrentar os mosquitos dos brejos do vale do rio Pequeno e do rio Grande (Pinheiros), verdadeiros pântanos, hoje debaixo das águas da represa Billings. Deste ponto abriam-se duas opções: atravessar os brejões e chegar ao vale do Tamanduateí por terra, ou tomar um barco no rio Pequeno rumo à sua desembocadura no Pinheiros e por este seguir em direção à confluência com o Tietê. O Pinheiros era um típico rio de planície, com uma declividade quase imperceptível. Tinha uma sinuosidade estupenda, sombreada por uma densa mata de galeria, com remansos margeados por praias de areia branca. Esta rota fluvial tinha três alternativas, escolhidas de acordo com as circunstâncias. As cargas muito pesadas eram carregadas por escravos índios na subida da serra e em seguida colocadas em barcos no Pinheiros. Entrava-se no Tietê rio acima até a foz do Tamanduateí. Alguns desembarcavam no primeiro porto, na Ponte Pequena, e a maioria seguia até o Porto Geral, local onde hoje se encontra o cruzamento da Ladeira do mesmo nome com a Rua 25 de Março, pois nesta época o Tamanduateí não era canalizado e chegava a encostar na colina histórica. Durante a estiagem de inverno havia duas opções: uma era o desembarque em Virapoeira, ou Ibirapuera, no atual bairro de Santo Amaro, próximo à desembocadura do Guarapiranga no Pinheiros; a outra era a utilização do porto do aldeamento de Pinheiros, embrião do atual bairro ? deles seguia-se por terra até a vila de São Paulo. O jesuita Fernão Cardim fez uma iteressante descrição de uma viagem no início do século 17, do alto da serra até Santo Amaro, após dois dias da saída de São Vicente : ?Ao 3.º dia navegamos todo o dia por um rio de água doce (Pinheiros), deitados em uma canoa de casca de árvore, em a qual íam 20 pessoas..., era necessário guardar o rosto e os olhos; porém a navegação é graciosa por o ser a embarcação e o rio muito alegre, cheio de muitas flores e frutas, de que íamos tocando quando a grande torrente nos deixava; chegando à peaçaba, lugar onde se desembarcam, demos logo com um campo cheio de mentrastos (hortelã silvestre); aquela noite nos agasalhou um devoto com galinhas, leitões, muitas uvas e figos de Portugal, camarinhas brancas e pretas e umas frutas amarelas do tamanho e feição de cerejas...Ao dia seguinte vieram os principais da vila (São Paulo), a três léguas receber o padre.? Ou seja: no 4.º dia de viagem ainda tiveram que andar 20 km! Até meados do século 18 estas eram as condições de acesso à cidade de São Paulo. Novas necessidades provocariam melhoras. Nas últimas décadas do século, devido a uma conjuntura favorável na economia mundial, houve um surto canavieiro na capitania de São Paulo, voltado para a exportação de açúcar. Diante da necessidade de melhoria da comunicação com o litoral, foi inaugurada em 1792 a Calçada do Lorena, uma estrada pavimentada com pedras, na margem esquerda do rio das Pedras. Em 1846 seria aberto um caminho ainda melhor: a Estrada da Maioridade, inaugurada por d. Pedro II. Duas décadas depois esta rota foi aprimorada pelo empreiteiro José Vergueiro, quando, além de melhoramentos em pontes, cortes e aterros, fez-se uma alteração no trecho da chegada a São Paulo que evitava as cheias do Tamanduateí subindo o espigão da Vila Mariana ? a Estrada do Vergueiro. Estas últimas melhorias eram um reflexo da cultura do café, a nova e dinâmica atividade exportadora que exigia um aperfeiçoamento da infra-estrutura. Em 1865 conclui-se o primeiro trecho da São Paulo Railway, a ferrovia que iria provocar profundas transformações na cidade de São Paulo. Curiosamente, os engenheiros ingleses responsáveis pela obra confirmaram, sem o saber, o antigo caminho do Ururaí, no vale do Mogi, aquele mesmo abandonado no século 16 diante dos ataques dos tamoios. O historiador Eurípedes Simões de Paula considerava o advento da ferrovia como uma segunda fundação da cidade. De fato, ela provocou alterações profundas na acanhada São Paulo que pouco havia crescido em mais de 300 anos de existência. A ferrovia permitiu não só um melhor escoamento da crescente produção de café, como também possibilitou a subida pela serra de maquinário pesado e estruturas de ferro que facilitavam a abertura de indústrias. A ferrovia potencializou a ?boca-de-sertão? que era São Paulo... De 25 mil habitantes em 1965, passaria a 240 mil em 1900. A expansão do comércio e a incipiente industrialização foram acompanhadas de notáveis melhoramentos urbanos: água encanada, esgotos, iluminação a gás e bondes puxados por burros. Em 1900 circularam os primeiros bondes elétricos e no ano seguinte, no mesmo ano da construção da nova Estação da Luz, era inaugurada a primeira usina hidrelétrica em Santana do Parnaíba. É, portanto, dentro deste panorama, em plena Belle Époque, que a cidade recebe eufórica aquela construção magnífica, como que celebrando a modernização propiciada pela estrada-de-ferro. Os caminhos da Luz, anteriormente usados no século 16 como passagem do gado que pastava nos campos comunais do Guarepe, nome primitivo da região, jamais seriam os mesmos.

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