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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Esquerda ou direita

Passada a pandemia, todos vacinados, dê um tempo, vá a uma cidade desconhecida, deixe as malas no hotel e saia

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Atualização:

Não existe coisa melhor do que chegar numa cidade desconhecida, deixar as malas no hotel e sair, escreveu Luis Fernando Verissimo. Na calçada, decide-se: direita ou esquerda?

Passada a pandemia, todos vacinados, dê um tempo, vá a uma cidade desconhecida, deixe as malas no hotel e saia Foto: Pixabay

Apenas em viagens, nasce a disposição de fazer um caminho novo, sair andando sem rumo, se perder por vielas e bairros estranhos. Dia um em Barcelona: vamos nos perder no Bairro Gótico? Em Nova York: atravessamos o Central Park na diagonal? Paris: seguimos pelas calçadas estreitas de Marais? San Francisco: No primeiro bonde? O que vem em mente? Observar rios, construções, pontes, a vista, a rotina de moradores, suas ruas, casas, parques, praças com crianças brincando. E, no almoço, um restaurante de bairro, nada turístico: vinho da casa na Espanha, croque-monsieur na França, cheesecake num dinner americano, primo piatto na Itália. Estamos momentaneamente impedidos de viajar, ver, observar, xeretar, virar os olhos e o pescoço para escolher: direita ou esquerda? Atrofiamos dia a dia. Na infância, diante da TV velha em preto e branco com horário para ser assistida, nos esparramávamos pelo chão com irmãos, primos, amigos. Um levantava para mudar um dos cinco canais, e rolava protesto com guerra de almofada.  Corríamos até o quintal. Opções: bola de gude, empinar pipa caseira, jogo de bola – queimada, vôlei, futebol, taco, pega-pega, esconde-esconde, trepar na única e heroica árvore, correr pela calçada: “sor-veeee-te!”.  Tudo isso depois de voltarmos da escola, com recreio antes e bagunça no pátio depois. E diziam: “Ainda bem que você tem pescoço para não perder esta cabeça”. Hoje, as crianças acordam e, com a roupa que estão, fixam os olhos numa tela. Durante a pandemia, têm aulas por ela. Como acha que eles, os pescoços, se sentem? Veja sua rotina adulta antes da pandemia: acordar, café da manhã, lavar a louça, passar uma vassoura, colocar roupas de molho e outras para lavar, ler o jornal, girar a cabeça em busca da notícia, da esquerda para a direita, se vestir, olhar de cima a baixo, ir de carro ou transporte público, ou de carona, olhar o movimento, a nova construção, as nuvens, pedestres, o farol fechado. Depois, caminhar na calçada até o escritório, conversar no hall, conversar na entrada, conversar no elevador, olhar o visor no teto, tomar um café, só depois ir para a tela.  Se levantar, ir para outro café, sair, almoçar com um ou uma colega, esperar as mesas papeando em pé ou num balcão, passar mais de uma hora trocando ideia, olhando tudo ao redor, julgando as pessoas, paquerando eventualmente. Voltar ao trabalho.  Seis da tarde, happy hour num boteco com amigos e amigas, cervejinha relaxante, pôr do sol à vista, noite e luzes, um cineminha? Um teatro? Café na livraria para um lançamento? Ou exposição? Onde vamos jantar? Tem uma balada hoje? Então, perdíamos a cabeça... Como os nervos e músculos eram soltos, relaxados, flexíveis. Hoje, supraespinhal, esplênio, trapézio e o nervo óptico estão rijos como um tronco. Tudo dói.  Surgem os torcicolos, a rigidez pela hiper tonicidade dos cervicais. Faz-se de tudo: fisio, pilates, ioga, do-in, shiatsu, massagem, bolsa de água quente, acupuntura, relaxante muscular, anti-inflamatórios, injeçãozinha de cortisona... Queria o quê? Vejamos a rotina no presente. É acordado pelo alarme de um celular. Aproveita e checa as mensagens. Uma escova de dente elétrica oscila, pulsa e rotaciona sem você mexer a cabeça. Lê o jornal numa tela sem mexer a cabeça. Muda de mesa para o home office para uma tela maior. E nela fica toda a manhã. Um aspirador robô limpa a casa. Esticando o braço, aciona a cafeteira elétrica com cápsulas. Checa a vida de outros pelos aplicativos. Manda mensagens, curte fotos. A cabeça e olhos na mesma direção. Faz supermercado pelo mesmo computador, assim como farmácia, shopping, operações bancárias. O vinho chega na porta, depois da encomenda. Se bobear, a paquera é pela tela. Nem percebemos que temperatura faz lá fora, é indiferente se chove ou faz sol. Chega o almoço via delivery em caixas de papelão descartáveis. Não se sujam louças. Nesses tempos, aumentaram o estresse, o número de gente com enxaqueca, herpes-zoster, insônia. Mas são eles, os pescoços, úteis na evolução, primordiais para observar a caça, considerados até um ponto erógeno, que sentem os efeitos de nosso novo e forçado sedentarismo. Estão travados, como seus acoplados ombros, cotovelos e espátulas. Nódulos em toda parte se espalham. Nossos torcicolos estão acompanhados de bursites e tendinites.  Dá para pedir para olhar pela janela alguns instantes e ver o que está acontecendo lá fora? Não. Porque, depois do trabalho, ou seja, office, fazem-se chamadas ou calls, e happy hour online virou tradição, sem contar lives e compras. Depois, uma série na mesma tela e nem o travesseiro da Nasa traz alívio, porque as tensões das contas atrasadas interrompem o sono.  Prometa uma coisa. Passada a pandemia, todos vacinados, dê um tempo, vá a uma cidade desconhecida, deixe as malas no hotel e saia. Na porta, vire o pescoço e decida: direita ou esquerda. E se perca. É ESCRITOR E DRAMATURGO, AUTOR DE ‘FELIZ ANO VELHO’

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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