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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Espionando o xaveco

Sites de paquera dão ao usuário chances de um novo amor, e as clientes dão dados cadastrais

Atualização:

Interferências eleitorais via redes sociais em democracias antes estáveis e consolidadas tornaram o processo político imprevisível, injusto e manipulável, como prova o assustador documentário Nada É Privado (Netflix).

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Ficamos sabendo como uma empresa londrina modesta, Cambridge Analytica, mudou o mapa geopolítico mundial, aprovou o Brexit, apesar de negar, e elegeu Trump, depois de obter dados de usuários do Facebook.

O Face com as gigantes Amazon, Google, Microsoft formam as Big Four (ou Gang of Four) e enriquecem seus donos vendendo informações, um negócio que fatura mais de um trilhão de dólares por ano. 

Ao analisá-las, é possível detectar como vencer uma eleição democrática bombardeando os indecisos estratégicos de news e, principalmente, fake news, e é possível reescrever a história, a ciência, a realidade. Vale tudo, até planificar a Terra. Saiu na net, o povo acredita.

Se você gosta de cachorro, não gatos, tem filhos, é casado, vai a bares, viaja, prefere livros, séries, vinho, roupas esportivas, tudo é registrado pelas tech companies para quem interessar e pagar. E se você tem dúvidas eleitorais, será uma commodity cara.

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Nada disso é novidade. Porém, cuidado. Sites de paquera oferecem ao usuário chances de um novo caso de amor, e a clientes dados cadastrais. O Bumble, por exemplo, na onda da polarização local, pergunta se o usuário romântico é de esquerda, centro ou direita, informação que nos dias de hoje atrapalha o convívio e é preciosa para as próximas eleições.

Judith Duportail, repórter do The Guardian, requisitou seus dados em 2017 ao Tinder. Na Comunidade Europeia, é lei, são obrigados a fornecer. Recebeu 800 páginas, inclusive a cota de likes no Face; para abrir a conta no Tinder, usou o login do Face. “Foi uma viagem a minha esperança, temores, preferências sexuais e segredos mais profundos”, escreveu.

Coração solitário. Tinder, Happn, Bumble e outros sabem de tudo o que você faz no aplicativo. Cada match, conversa, as preferências que seriam usadas para encontrar a outra metade da laranja, são vendidas por aí. O xaveco de um usuário vira dado, que vira alvo, logo, mercadoria. 

Nada demais. A internet veio para facilitar nossa vida. Muda tudo quando você é informado que a campanha eleitoral de Trump criou 5,9 milhões de anúncios ao Facebook para serem enviados a indecisos de Estados-chave, contra 66 mil de Hillary. * Me lembro do dia em que o UOL começou a operar em 1996 via Netscape. Ocupava uma sala envidraçada no terceiro andar do prédio da Folha, abaixo da redação, no chamado Dedoc (Departamento de Documentação), sala de arquivos de fotos e recortes antigos que toda empresa de comunicação tem.

Eu já tinha um e-mail via Unicamp, onde fazia mestrado, e Stanford. No Brasil, a internet era restrita apenas às universidades, um instrumento de pesquisa acadêmica. A estatal Embratel se privatizava. Anunciava-se enfim a abertura ao público. UOL queria ocupar o espaço ainda inexplorado antes da poderosa AOL (American On Line) desembarcar no Brasil.

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Fui um dos primeiros a ter um e-mail uol. Era o nascedouro da internet, mas o caminho estava traçado: o arquivo e as fotos em papel agora seriam digitalizados para a eternidade. 

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Em pouco tempo o e-mail se popularizou. E o hábito de lê-lo, um pesadelo. Era preciso separar outra praga que surgia, o spam. Meu e-mail já estava contaminado em meses. Criei outro para trabalho, família, amigos, contratos. Vazou. Mudei de novo.

Deletei os antigos, como se enterrasse com vendeta uma quantidade infindável de malas que invadiam minha privacidade. Criei um quarto e-mail. Vazou. Era trabalhoso identificar uma mensagem pessoal entre cada cem propagandas e releases. 

Muitos abandonam o velho e confiável e-mail, e trocam informações e arquivos apenas pela rede social. Estou nessa. Antes, porém, decidi investigar como vazou. Pacientemente, segui as instruções para descadastrar spans. Surpresa. “Optando por não receber mais e-mail dessa empresa, você sairá de todas as listas. Atenciosamente, equipe Comunique-se.” 

Talvez a culpa seja minha, que não lê contratos de termos e condições, nem políticas de privacidade. O melhor site brasileiro de jornalistas, do qual sou leitor assíduo, oferecia meu e-mail a um número incontável de assessores de imprensa. 

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Então, fui à caça. Descobri outra fonte de spans, Press Manager, “plataforma integrada que engloba todas as rotinas diárias dos jornalistas, nos mais diversos modelos de negócios”. Será? Nem eu sei da minha rotina...

Press Manager anuncia ser a primeira empresa no mercado com plataforma completa e integrada com “interação em tempo real nas principais redações de revistas, jornais, TV’s, rádios e portais de notícias”. 

Desde 2012, agrega 1.500 clientes, como o governo do Estado de SP, Sesc, Smart Fit, Fiocruz, Museu da Casa Brasileira, TSE, Sebrae, tem 55 mil jornalistas e blogueiros cadastrados e enviou 410 mil releases. Chegará a meio milhão em breve. Meio milhão!

Spam ainda não é crime. Pode ser inconstitucional. Artigo 5º: “São invioláveis a intimidade, a vida privada”; “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações”. Release é spam? Vidonho Júnior (JusBrasil) escreveu: “O envio do spam viola a intimidade e a própria privacidade, pois utiliza-se de informações conseguidas ou furtadas ao arredio dos internautas, e quando enviadas causam a ruptura e constrangimento entre os e-mails regulares ou autorizados, e os ditos spams”.

Gosto de releases, já publiquei muitas matérias, posts, graças a e-mails enviados por assessores de imprensa. O problema é o excesso, a banalização. Para que me mandar informações sobre a carreira de sertanejos ou leilões de gado?

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Pedi para ambas as plataformas me tirarem das listas de divulgação. Fui atendido. “Inativamos o seu contato no mailing de imprensa e pedimos desculpas pelo transtorno”, me mandou o diretor comercial da Press. A média de spans caiu para dez por dia. Quase todos úteis. Viva a primavera! 

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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