Esgotamento mental: seu diagnóstico de Burnout é único e sua recuperação também será

A importância do engajamento do paciente na busca por equilíbrio emocional

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Por Camila Tuchlinski
Atualização:

Por mais que pesquisadores da área de saúde mental se esforcem para encontrar diretrizes e protocolos para atendimento, quando o assunto é sofrimento emocional, cada história é única. Somos singulares, sobretudo na dor. Isso nos faz pensar que o sucesso de um tratamento envolve, principalmente, o engajamento do paciente. E com a chamada Síndrome de Burnout não é diferente. Não dá para mensurar o esgotamento mental, que é individual, por mais que as empresas e familiares se esforcem para oferecer o melhor acolhimento. “Sempre achei que podia ir um pouco mais além do que o meu corpo permitia e acabei não escutando os sinais que ele me mostrava. Acabei colocando muita cobrança em mim mesma, sempre querendo alcançar mais e pensando que não era capaz, criando um looping no qual eu não conseguia sair”, conta a analista de pesquisa e mercado Julia Bizarri Guarnieri, de 32 anos, que recebeu o diagnóstico no fim de 2019. 

A analista de pesquisa e mercado Julia Bizarri Guarnieri, que buscou psicoterapia após diagnóstico de Burnout Foto: Alex Silva/Estadão

“Para além da cobrança dos gestores, algumas pessoas têm a sensação de que nunca fazem o suficiente e seguem se sobrecarregando. É comum isso estar relacionado ao seu desenvolvimento ou mesmo a uma situação traumática. Aprenderam que não eram capazes de realizarem suas tarefas. Mesmo quando recebiam elogios, estes vinham acompanhados de um ‘mas’. Esse ‘mas’ anula o que foi dito antes”, afirma a psicóloga Lucia Rosa, que trabalha com grupo voltado para Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) no Brasil. Se a gente ‘vasculhar’ na nossa história infantil, quem nunca se comparou ou foi comparado com o desempenho do coleguinha de sala de aula? E na disputa por uma vaga no mercado de trabalho? Por vezes, carregamos para a vida adulta ideias como ‘se disser não, serei um fraco’ ou ‘se me negar a fazer algo, irão me reprovar’. Na opinião de Deisy Emerich-Geraldo, doutora em Psicologia Clínica (USP), as pessoas também sofrem por não conseguirem se comunicar adequadamente. “Ter a habilidade de ser assertivo para se comunicar com as pessoas que te cercam – negar ou negociar prazos/tarefas/pedidos e também pedir por aquilo que precisa, sinalizar a necessidade – seja na vida pessoal ou profissional. Isto também envolve estar em contato com outros, círculo íntimo e/ou profissionais de saúde mental, no sentido de compartilhar suas vivências acerca dos eventos que estão causando estresse e as emoções que você está tendo. Além disso, é importante destacar que, quando estamos sob estresse, facilmente podemos nos sentir frustrados e irritados, e isso pode ter um efeito negativo em suas habilidades de comunicação – o que demanda uma especial atenção a esta área”.

Paraa psicoterapeuta Deisy Emerich-Geraldo, doutora em Psicologia Clínica (USP), o Burnout é reflexo de uma sociedade que cobra excessivamente por excelência Foto: Alex Silva/ Estadão

A pressão foi tão grande para Julia Bizarri Guarnieri que ela não conseguia se reconhecer mais. “Sentia-me completamente perdida, com falta de propósito e energia, com uma sensação interna de vazio, uma espécie de crise existencial, sem reconhecer quem eu era e sem ter clareza mental do que eu queria”. Foi então que a analista de mercado decidiu procurar ajuda na Psicoterapia, já que percebeu que precisava mudar. “Notei que, além de todo suporte familiar, a ajuda de uma profissional seria fundamental nesse processo. Na psicoterapia, aprendi que está tudo bem não estar bem. Passei a observar meus comportamentos e os efeitos da minha autocobrança. Comecei a me conhecer, a trabalhar minha insegurança e a enfrentar meus medos. Aprendi a me perguntar se minhas atitudes estão me aproximando da Julia que eu quero ser no futuro”, afirma.

'Sentia-me completamente perdida, com falta de propósito e energia, com uma sensação interna de vazio', declara Julia Bizarri Guarnieri Foto: Alex Silva/ Estadão

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Yu Tse Heng, doutorando em administração, e Kira Schabram, professora assistente de comportamento organizacional, são pesquisadores da Foster School of Business da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Eles utilizaram dois projetos - uma pesquisa de campo longitudinal de 130 provedores de serviço social e uma metodologia de amostragem experimental com 100 estudantes de negócios em 10 dias - e constataram que a compaixão pode ser um importante agente de mudança para o funcionário que se sente exausto. “Analisamos o poder de geração de recursos de duas expressões distintas de compaixão (autodirigida e dirigida pelos outros) nas três dimensões do esgotamento (exaustão, cinismo, ineficácia). Encontramos um padrão complexo de resultados indicando que ambas as expressões de compaixão têm o potencial de gerar recursos saudáveis (autocontrole, pertencer, autoestima) que reabastecem diferentes dimensões do Burnout. Especificamente, a autocompaixão remedia a exaustão”, diz um trecho do artigo, publicado em janeiro deste ano. “Podemos desenvolver e treinar novas habilidades que irão melhorar a autoestima. Todos nós podemos ser bons em muitas coisas. Isso cria recursos que são fundamentais pra gente se regular diante das demandas da vida”, pondera a psicóloga Lucia Rosa. Quando começou a olhar mais para si mesma com compaixão, Julia passou a reconhecer seus limites. “Sou uma pessoa mais confiante, mais atenta e percebo quando preciso diminuir o ritmo. Faço pausas conscientes e estou aprendendo a dizer não. Também aprendi a pedir ajuda, pois sei que minha vulnerabilidade me fortalece e que eu não estou sozinha nesse processo, por isso a importância de nos comunicarmos. Percebi a importância de olhar para dentro primeiro para depois encontrar lá fora o que procuro”, avalia.

O autocuidado também foi um aliado importante na recuperação: “Uma das ferramentas mais poderosas que encontrei no caminho foi a ioga. Descobri uma maneira de criar uma conexão mais profunda comigo e iniciar o despertar para uma transformação em meu estilo de vida. A prática, combinada com a atenção plena (mindfulness), técnicas, como a escrita e exercício físico, tem me ajudado a fortalecer a conexão entre meu corpo físico e minha saúde mental”.  O alívio dos sintomas de esgotamento deu espaço para que Julia exercesse a criatividade, inclusive em projetos pessoais. “Lancei meu podcast ‘Pra mim eu digo sim’, cujo objetivo é falar sobre redescobertas, saúde mental e novos hábitos, tentando reforçar a importância desses temas, visando ajudar pessoas que de alguma forma precisam, assim como eu, de um incentivo para olhar para dentro de si”, diz. O podcast está disponível no Spotify.

Julia percebeu que precisaria se engajar no processo de cura e buscou também ações de autocuidado, como ioga, meditação e exercícios físicos Foto: Alex Silva/ Estadão

O manejo de emoções como frustração, ansiedade e insegurança está no nosso mundo interno, porém, é preciso relacionar com o contexto global da situação, como pondera Deisy Emerich-Geraldo, doutora em Psicologia Clínica (USP). “Nós vivemos em uma sociedade que estimula a produtividade e o ‘ser ocupado’, e, por ser algo estimulado na cultura, acaba sendo algo valorizado socialmente. Então, este é um fator que impacta o individual e pode contribuir para que as pessoas tenham a ideia de que ‘ser eficaz’ e ‘ser produtivo’ é via para ser visto, ser valorizado, ser feliz. Estas construções também dependerão da história de vida de cada pessoa. E a consciência desta complexa relação entre o sujeito, sua própria história e a cultura em que está inserido é um passo importante”. 

Como identificar o esgotamento mental?

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O que está fazendo você se sentir esgotado? Longas horas de trabalho, sobrecarga de tarefas, poucas pausas, contexto de insegurança de emprego e dificuldades no relacionamento com colegas ou chefes provavelmente são os pontos mais sensíveis e que podem contribuir para a Síndrome de Burnout.  “A pandemia e o seu inevitável impacto no contexto econômico automaticamente gerou esse senso ‘insegurança no trabalho’. Imagine, então, ter um gestor que emprega estratégias coercitivas como ameaças, exposição e comparações entre desempenho dos funcionários?”, aponta a psicóloga Deisy Emerich-Geraldo. Nesse aspecto, vale destacar que a prevenção ainda é o melhor caminho. As empresas precisam abrir um canal de comunicação para os funcionários e oferecer recursos necessários para apoiar a saúde mental deles. Ao mesmo tempo, os indivíduos devem promover a auto reflexão e identificar quais são as questões que colaboram para que se sintam esgotados. Depois, determinar quais ações podem tomar em busca da recuperação, através do autoconhecimento.

Como prevenir a Síndrome de Burnout?

A prevenção contra o esgotamento mental ainda se mostra o melhor caminho ante a redução de danos. Além da psicoterapia, muitas práticas são simples e proporcionam sensação de bem estar. Confira:

* Se cobre menos

Além das exigências do trabalho, tente cobrar menos do seu próprio desempenho, pois este é um dos principais motivos que levam a pessoa ao Burnout. Entender que a perfeição não existe e que está tudo bem é um passo importante. A psicoterapia o ajudará a refletir sobre isso com outra pessoa.

* Crie uma rotina

Uma outra dica é organizar seus afazeres da semana, com metas simples e constantes. Lembre-se: quanto mais tarefas se propuser, mais ansioso ficará. Um pouco é melhor do que nada.

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* Tenha momentos de lazer

O lazer é extremamente importante, mas deixado de lado por pessoas que acabam colocando o trabalho como prioridade. Encontrar momentos de prazer como ler um livro, escutar uma canção ou assistir a um filme podem ser boas dicas. 

* Tire folgas pendentes e use as férias

As férias e folgas são direitos dos trabalhadores mas, para além disso, servem para recarregar as energias. Não adie seu descanso e aproveite esse período, de preferência, longe dos dispositivos eletrônicos, como celular e computador.

* Cultive relacionamentos saudáveis 

Somos seres humanos a partir do relacionamento com as outras pessoas. Cultivar relações saudáveis com colegas de trabalho, amigos ou familiares pode ajudar sua saúde mental. E atenção: fuja de discussões desnecessárias.

* Exercícios físicos como remédio

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Para aqueles que sofrem com estresse, ansiedade ou esgotamento mental, exercício físico não é opção e faz parte da cura ou prevenção. No entanto, escolher uma prática que lhe dê prazer faz com que você não desista no meio do caminho. Meditação e ioga são boas opções.

* Melhore sua alimentação

Se está difícil melhorar os hábitos alimentares, comece diminuindo a quantidade de ingestão de bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados. Na sequência, ou ao mesmo tempo, procure se hidratar mais com água, chás ou sucos naturais e insira maior quantidade de frutas e legumes no dia a dia. 

* Respire 

De todas as dicas, esta é a mais simples e acessível para todos. No entanto, poucos param para pensar sobre seus benefícios. Fazer uma pausa de cinco minutos do seu dia para inspirar e expirar, com os olhos fechados, desviando o foco das preocupações, te trará uma sensação de alívio. Que tal tentar?

Projeto trabalha prevenção a Burnout e TEPT com profissionais da linha de frente contra covid-19

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, especialistas em saúde mental já previam o aumento do número de casos de Síndrome de Burnout e de transtornos decorrentes de traumas, afinal, ninguém havia presenciado uma pandemia dessa magnitude. A psicóloga Lucia Rosa trabalha com um grupo voltado para Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) no Brasil há quase dez meses com profissionais da Rede de Atenção à Saúde que estão na linha de frente contra a covid-19. Ela atua com o sistema Bodyamic, teoria psicológica desenvolvida pela dinamarquesa Ditte Marcher e que faz o manejo de conceitos como dignidade, conexão mútua, funções do ego e desenvolvimento muscular. 

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A psicóloga LuciaRosa, que trabalha com grupo especialista em TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) Foto: Gabriela Badiani Gibier

Os depoimentos dos pacientes são compartilhados em uma página do grupo no Facebook. Em entrevista ao Estadão, Lucia Rosa nos conta como os profissionais estavam no início da pandemia do novo coronavírus e como se desenvolveram depois, com a intervenção psicoterápica.

1 - Do que se trata o projeto? É um projeto que foi desenvolvido inicialmente para a gente prestar atendimento a profissionais que trabalham com covid, no front. Todos que estão na rede de atenção à saúde, desde o atendente, passando pelo motorista da ambulância, o faxineiro. Uma das integrantes do grupo, que é professora, decidiu fazer um projeto de pesquisa científica com o trabalho que estávamos realizando. E esse projeto foi aceito pelo comitê de ética e pesquisa da UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Nós usamos escalas que são reconhecidas internacionalmente e validadas no Brasil, que são indicadores de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), de estresse, ansiedade, depressão e essas escalas são aplicadas nos pacientes que se inscrevem e aceitam participar da pesquisa, então, são encaminhados para os psicólogos. 

2 - Como funciona o atendimento na prática? A pessoa se inscreve e passa por uma avaliação. O protocolo é de seis atendimentos e, depois das seis semanas, a gente volta a atender em um mês. Na sequência, em três meses, em seis meses e um ano. Isso é importante para a gente acompanhar a evolução da pessoa. No final do trabalho, a gente deixa com eles todos os exercícios realizados nas seis primeiras semanas, que seguem um protocolo que trabalha com crises, TEPT e todos os transtornos causados pela pandemia. O Bodynamic é um sistema que trabalha em cima do desenvolvimento, com o corpo e com a fala. A gente ativa músculos que são comprometidos e que podem ser trabalhados para desenvolver novas habilidades e recuperar outras que foram escondidas pelo trauma ou situações de tensão. A abordagem do TEPT foi desenvolvida pela dinamarquesa Ditte Marcher com um trabalho com veteranos de guerra na Ucrânia. A criadora do método é a mãe dela, Lisbeth Marcher. E o protocolo que a gente usa no Brasil é baseado nele.

3 - Quantos já foram atendidos pela equipe de psicólogos? É uma equipe grande, já atendemos 200 profissionais ligados ao covid-19 nesses dez meses que estamos realizando esse trabalho.

4 - Quais foram os principais relatos dos profissionais de saúde no início da pandemia? Na minha experiência, atendi algumas pessoas com pânico, muito medo de contaminar familiares, com receio de morrer, pois muitos colegas faleceram. Tenho pacientes que chegaram a presenciar a perda de dez pacientes no mesmo dia. Nível de estresse elevado, entrando em um quadro de depressão, insônia e desânimo. Às vezes, temos quadros de compulsão, ansiedade e angústia. Um sentimento muito grande de desamparo. Tem uma paciente que o marido tem um problema renal grave e ela pegou covid depois de ter tomado as duas doses da Astrazeneca. Ela entrou em pânico de contaminar ele e ter um agravamento por ser um paciente renal. Também trabalhamos com o manejo de energia e profissionais que estão dentro de CTIs (Centros de Terapia Intensiva) e eles lidam com alto impacto o tempo todo. A gente sabe que, estatisticamente, só 20% dos pacientes intubados sobrevivem. Já escutei de pacientes que viram morrer, na pandemia, muito mais gente do que presenciaram durante a vida profissional inteira. E são pessoas mais velhas, de 45 anos, e isso é muito duro. A gente faz com que eles consigam trabalhar melhor as emoções que estão dentro deles.

5 - Quais são as melhoras que você pode observar nas pessoas atendidas? As pessoas melhoram mesmo e, quando você volta a acompanhar, é uma delícia. Tem expressões tão bonitas de felicidade... me veio a imagem agora de uma técnica de enfermagem que eu atendi e o estado dela com a mudança...um sentimento de alegria mesmo, de se sentir amparada, acolhida. E nossa proposta é essa: cuidar de quem cuida. Se você não se cuida, não consegue cuidar do outro. A sobrecarga faz isso. 

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