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Esforço para entender o Brasil

O historiador José Murilo de Carvalho, um dos principais nomes do pensamento nacional, critica a demonização da elite intelectual e diz que as universidades do País estão mais autorreferentes, afastando-se da 'mentalidade colonizada'

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Atualização:

O historiador José Murilo de Carvalho está otimista. Ele acredita que, graças à multiplicação dos cursos de pós-graduação, o mundo acadêmico nacional começou a abandonar o que chama de “resíduo de mentalidade colonizada”, isto é, a deferência excessiva ao pensamento de autores estrangeiros. Membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carvalho é um dos principais estudiosos de História do Brasil e, por extensão, uma das vozes mais importantes do pensamento nacional - que defende com vigor. “Não sou partidário da demonização de nossas elites intelectuais”, disse ele em entrevista ao Estado.

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Coordenador do livro A Construção Nacional (1830-1889), segundo volume da coleção História do Brasil Nação (Objetiva), que acaba de ser lançado, Carvalho também comenta a relação difícil entre o País e seus vizinhos latino-americanos, fala da persistência por aqui do espírito escravocrata e faz um exercício sobre como os historiadores brasileiros do futuro analisarão o momento atual. Para ele, os pesquisadores terão de esperar mais para saber se o bom momento da economia é sólido o bastante de modo a “operar a redução real da imensa desigualdade que ainda nos aflige”.

Em A Construção Nacional, o sr. diz que, no Brasil as relações senhor-escravo entraram na prática política, contaminando a cidadania com os germes do autoritarismo e do paternalismo, e esse “terrível libelo ainda se reflete no debate político atual, quando se discutem ações afirmativas”. Como isso se dá efetivamente?

A afirmação inspirou-se em Joaquim Nabuco. Em O Abolicionismo, ele afirmou que a escravidão no Brasil fora mais hábil do que a norte-americana porque se manteve aberta a todos, sem exclusão racial. Libertos e escravos podiam possuir escravos e, no dia seguinte à alforria, o liberto tornava-se cidadão pleno. Assim, a dialética senhor-escravo transportava-se para dentro do cidadão, invadindo o domínio da civitas, cujos valores corrompia. Com isso, previu ele, as consequências da escravidão estariam conosco por um século ou mais. Desdobrei a visão de Nabuco, colocando-a, ao lado de valores ibéricos e patriarcais, na origem de fenômenos como o autoritarismo, o corporativismo, o clientelismo que permeiam até hoje nossa cultura política. A ideia dos efeitos duradouros da escravidão é usada para justificar as políticas atuais de compensação, assim como o complexo senhor-escravo dentro do cidadão certamente afetou a natureza dos movimentos negros, menos radicais do que nos Estados Unidos, e a resistência mais prolongada ao reconhecimento da legitimidade das reivindicações por parte da sociedade e dos governos. 

O sr. defende a ideia de que o Brasil teve uma “monarquia presidencial”. Podemos dizer que hoje temos um “presidencialismo monárquico”, dado o tamanho do poder do presidente, garantido pela harmonia interesseira de sua “corte” de partidos governistas?

A ideia de monarquia presidencial busca dar conta de um sistema monárquico que não era absolutista como no Antigo Regime, nem parlamentarista, como na Inglaterra. O Poder Moderador conferia a seu titular poderes presidenciais de ingerência em todos os assuntos de Estado, sobretudo no exercício do veto e na livre nomeação dos ministros. A expressão “Sua Majestade, o Presidente” já era defendida por John Adams, um dos pais da pátria norte-americana. Presidencialismo monárquico ou imperial foi, e é, expressão usada comumente nos EUA, sobretudo nos mandatos de Bush I e Bush II. Entre nós, Ernest Hambloch, cônsul inglês no Rio, publicou em 1936 o livro Sua Majestade o Presidente do Brazil. A livre nomeação dos ministros, o poder de veto e a posse da Caneta, além do esvaziamento dos partidos e do Congresso, justificam, sem dúvida, a expressão presidencialismo imperial que é, aliás, aplicável, e com mais razão, a outros países ibero-americanos. 

Na sua opinião, a guerra foi o principal ponto de contato entre o Brasil e seus vizinhos hispânicos. O Brasil segue sendo visto como imperialista na região?

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As críticas ao expansionismo português, que levou nossas fronteiras para muito além dos limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas, foram transferidas para o Brasil independente. A decisão da Argentina de se juntar ao Brasil na guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi surpreendente e excepcional. A desconfiança dos vizinhos de intenções expansionistas e imperialistas por parte do Brasil é de difícil extirpação, mesmo após longo período sem ações que a justifiquem. Diria que ela ressurge agora quando o País atinge um patamar econômico que implica grande aumento nas relações comerciais e exige uma política externa mais agressiva. Um país que se expande ocupa necessariamente mais espaço econômico, político e cultural. Se isso for visto como imperialismo, vai depender da capacidade de diluir as velhas desconfianças. 

Por outro lado, a aproximação do Brasil com seus vizinhos foi qualificada pelo sr. como ambígua e hesitante, já que havia maior afinidade brasileira com os EUA e a Europa. Ainda hoje é assim, mesmo com o Mercosul e a adesão, ao menos retórica, ao “espírito bolivariano” a partir de Lula?

As tentativas de aproximação datam das últimas décadas e quase se resumem ao Mercosul, que vê as cláusulas de seus tratados frequentemente violadas pelos parceiros. A retórica bolivariana do presidente da Venezuela é isso mesmo, retórica, que não foi ainda nem mesmo capaz de liberar o dinheiro prometido para a construção conjunta da refinaria Abreu e Lima. Seria muita ingenuidade do governo brasileiro dar-lhe maior importância. A diplomacia companheira pode ter gerado boa vontade de alguns governos. Mas, na prática, será difícil evitar que o novo expansionismo, mesmo com cara benevolente, traga de volta fantasmas do passado, mesmo que eles reapareçam como chantagem para arrancar vantagens do bom gigante. 

Gostaria de falar um pouco sobre o ofício do historiador e a História. Em 1999, o sr. publicou o artigo “Como escrever a tese certa e vencer”, que ficou célebre entre os estudantes de História, mostrando que só é possível se sair bem nas avaliações da academia citando determinados autores e usando vocabulário pernóstico e empolado. Isso continua assim?

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O artigo foi motivado pela vivência de longos anos de nossa prática acadêmica. Alguns o interpretaram como oposição provinciana ao uso de autores europeus e norte-americanos. Nada mais equivocado. O que critiquei, espero que em tom bem-humorado, foi o resíduo de mentalidade colonizada embutido nesse uso, foi a crença de que esses autores, sobretudo franceses, ingleses, alemães e italianos, fornecem as teorias e nós entramos com os dados, eles dão a tecnologia e nós, a matéria-prima. Daí a moda de rechear teses e dissertações com os autores da moda, todos ou quase todos não brasileiros. Mas diria que o rápido crescimento da comunidade intelectual brasileira, graças à multiplicação dos cursos de pós-graduação, já começou a alterar o quadro. Essa comunidade é cada vez mais autorreferente, recorrendo ao diálogo externo como complemento e em bases mais igualitárias. 

Russell Jacoby, professor de História na Universidade da Califórnia, diz em Os Últimos Intelectuais que os chamados “intelectuais públicos”, aqueles desvinculados de instituições acadêmicas, estão acabando, e ganham espaço cativo apenas pensadores que, embora nada de original acrescentem ao debate público, são levados a sério porque são “de Harvard” ou “de Yale”. O sr. acha que temos esse mesmo problema no Brasil? É possível ser reconhecido como pensador público sem ter vínculos com as universidades?

A história dos intelectuais nos EUA, a que se refere Jacoby, é naturalmente distinta da nossa. Mas pode-se dizer que algo semelhante se passou entre nós, com o tradicional atraso. Esse atraso deve-se em boa parte à tardia criação de nossas universidades. Na década de 30, nossos maîtres-à-penser não eram universitários. São os casos de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado e mesmo Sérgio Buarque de Holanda. Até pouco tempo atrás ainda tínhamos Raymundo Faoro, José Honório, Guerreiro Ramos. Este último, aliás, escreveu uma crítica da ideologia do professor de sociologia dirigida a Florestan Fernandes. Com a expansão da universidade, a partir da USP e da Universidade do Brasil, o panorama tinha de mudar. Os intelectuais freelance estão reduzidos hoje a pequeno número, posto que ainda influente. Houve perda na qualidade ou no alcance do pensamento? Alguma, sim. O antigo intelectual era, sobretudo, um ensaísta, às vezes brilhante. O treinamento universitário lhes impõe maior rigor no raciocínio, mas esse mesmo rigor restringe a imaginação. O historiador ou cientista social que se aventurar a ensaios será malvisto pelos colegas, embora não perca o espaço na mídia, nem os leitores, o que pode ser um agravante. Mas vi agora na Argentina um bom exemplo de intelectuais universitários comportando-se como autênticos intelectuais públicos. Historiadores, juristas, críticos culturais manifestaram-se publicamente, e com muita coragem, contra a maneira pela qual o governo está ressuscitando a questão das Malvinas. 

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Como o sr. avalia o trabalho do historiador ante a nova categoria de fonte, virtual, na forma de profusão de textos na internet, alguns com apenas 140 caracteres? O sr. acha que ficou mais complicado estabelecer valor à documentação em se tratando desse tipo de fonte?

O trabalho de pesquisa foi enormemente facilitado. Documentos de arquivos e bibliotecas inteiras estão sendo digitalizados. Isso é fantástico, além de ser democratizante. A imensa enciclopédia digital em que se transformou o Google também facilita as coisas. O problema é o uso de textos da internet, que não são reprodução de documentos, como se fossem documentos. Os mecanismos de filtragem ainda são precários. Hesitei em minhas aulas em aceitar esse tipo de fonte nos trabalhos dos alunos. Acabei rendendo-me, mas continuo preocupado com a banalização, a superficialização e falsificação. 

A propósito dos desafios para o historiador, parece que vivemos um momento importante da República, no qual uma parcela da população historicamente marginalizada está se deslocando para cima na pirâmide social. Como o sr. imagina que os historiadores brasileiros do futuro avaliarão este período?

A análise do fenômeno é trabalho para historiadores, mas, a curto prazo, mais ainda para cientistas sociais. Como historiador, tenho de buscar a origem do fenômeno na Revolução de 1930. A partir daí, teve início o processo rápido de mobilização social e política que marca o Brasil moderno. O deslocamento de populações rurais para as cidades, por exemplo, foi violento durante os governos militares. As perturbações políticas que marcaram País de 1930 a 1985 estiveram sempre relacionadas com essas mudanças. Agora, a aceleração recente do fenômeno tem a ver com a combinação da redemocratização, com a estabilização monetária e com a maior ênfase na política distributiva. Sociólogos e cientistas políticos já o estão examinando. Historiadores terão de esperar um pouco mais. Esperar, por exemplo, para verificar se a mudança será consistente, se a expansão da economia permitirá colocar em base sólida o aumento da renda e operar a redução real da imensa desigualdade que ainda nos aflige. Dado nosso início tardio, o caminho à frente é mais longo do que o já percorrido. 

O sr. mostra neste volume sobre a História do Brasil que, no País, a temática europeia sempre foi adaptada à perspectiva local, razão pela qual “os liberais conseguiam conviver com a escravidão”. Podemos dizer que é o “jeitinho brasileiro” no campo das ideias, aquilo que Roberto Schwarz classificou de “comédia ideológica” em seu ensaio As Ideias Fora do Lugar? Há aí, para o sr., um certo cinismo das elites nacionais?

Não sou partidário da demonização de nossas elites intelectuais. Desde a independência, se houve esforços para justificar o existente, houve-os também para o reformar. E boa parte do recurso a teorias estrangeiras era recurso de retórica. A retórica exigia o uso do argumento de autoridade (um autor estrangeiro). A adesão às ideias desse autor era outra história. Havia muita adaptação e inversão. O liberalismo econômico era considerado a doutrina correta, mas na prática se fazia protecionismo. O liberal Tavares Bastos defendia a intervenção do Estado em políticas sociais. O positivismo comtista, conservador na França, foi usado aqui para defender a abolição, a república, a legislação trabalhista. Juntava-se o positivismo com o marxismo, como fez Leônidas de Rezende. Tudo isso podia ser jeitinho, mas era um esforço autêntico para entender nosso país e nossa inserção no mundo. Não era comédia.

COLEÇÃO HISTÓRIA DO BRASIL NAÇÃO - VOLUME 2

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A CONSTRUÇÃO NACIONAL: 1830-1889

Coordenação: José Murilo de Carvalho

Editora: Objetiva 

(320 págs., R$ 43,90)

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