Escritora indiana discute na Flip questões sobre identidade

Na noite de quinta-feira, Kiran Desai vai participar de debate na festa de Paraty

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Por Redação
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Em outubro, a rotina da escritora indiana Kiran Desai virou de ponta-cabeça. Ao ser anunciada como vencedora do Booker Prize, o mais prestigioso prêmio literário do Reino Unido, por seu romance O Legado da Perda (Alfaguara, 416 páginas, R$ 49), ela teve seu telefone repentinamente cheio de mensagens de três continentes e sua agenda passou a ter nenhuma página em branco. Um dos compromissos, porém, ela jura cumprir com muito prazer: nesta quinta-feira, 5, à noite, Kiran participa da última mesa do dia da Festa Literária Internacional de Parati, quando vai discutir, ao lado do angolano José Eduardo Agualusa, questões sobre identidade. Afinal, ela nasceu e passou boa parte da adolescência na Índia até se mudar para o Reino Unido, aos 14 anos, e um ano mais tarde para os Estados Unidos, onde terminou os estudos. Hoje, embora com apenas 35 anos, acumula uma admirável experiência, a ponto de ter escrito, com segurança, um grande romance - O Legado da Perda é uma delicada reflexão sobre a solidão do deslocamento, migração e identidade ao contar a história de um juiz indiano aposentado que vive ao pé do Himalaia com sua neta órfã e seu cozinheiro, diante de uma insurgência nepalesa. A prosa é cuidadosa, surpreendente e foi boa parte construída durante uma breve passagem pelo Rio de Janeiro, como Kiran conta na seguinte entrevista: Agência Estado - É verdade que você escreveu parte de O Legado da Perda quando esteve no Rio de Janeiro? Sim. Eu não conseguia escrever a história com desenvoltura enquanto estava em Nova York, que é minha residência oficial nesses dias. A forma como se edita livro lá é muito grande. A cidade é muito agitada e a escrita se parece mais com negócio que com arte. A América Latina era uma forma de liberdade. Primeiro, fui ao México, onde pensei que teria uma certa sorte porque, afinal de contas, é o lugar onde Gabriel García Márquez escreve (autor cuja obra encontra um profundo eco na Índia). Até que, depois de outras paradas, cheguei a Ipanema, no fim de uma rua próxima ao Cantagalo, em um apartamento pintado de cores solares, com uma vista para as montanhas, o som do cantar do galo. Vivi lá por seis meses e fui capturada, como acontece com todo mundo, pelo Rio, a cidade glamourosa. A cidade influenciou o livro? Certamente. Era uma vida maravilhosa para um escritor - trabalhar olhando aquelas montanhas loucas, selvagens, além de escrever no ritmo de vida do Rio. Mas tenho uma dívida mais profunda: permitiu que eu ampliasse os meus argumentos e expandisse meu trabalho para algo além da mera referência da Índia em relação ao mundo ocidental. Quando precisei escrever cenas de imigrantes, pude simpatizar com personagens de todo o mundo em desenvolvimento, desenhar paralelos com a história colonial, evidenciar o fato de que estamos todos no mesmo lado nos grandes debates, compartilhar a experiência emocional que temos na interação com as nações poderosas. Acho que isso foi importante para traçar aquelas linhas. Estancar os prejuízos criados pelo interesse único dos poderosos, que compõem um quadro formado unicamente pela tragédia do mundo em desenvolvimento. Como foi o processo de escrita: você começou pelos personagens ou pela trama? O livro teve início com os personagens, cada um conduzindo ao outro. Daí, surgiram os paralelos emocionais e históricos entre pessoas de diferentes partes do mundo, em épocas distintas, desde os dias da colonização até os atuais. Portanto, trata-se de um livro que tenta capturar essas paternidades, o resultado emocional de uma viagem por meio das gerações, o viver em um mundo marcado por um grande desequilíbrio de poder. Qual a importância do dilema étnico em seu livro? Muitas pessoas acabam equiparadas em situações de conflito de interesses, bloqueadas por simplesmente não saberem como proceder. Os conflitos são antigos na minha parte do mundo, alguns até arraigados, o bom e o mau correm juntos, a pureza do julgamento é uma busca falsa. Parece que qualquer movimento pode causar um dilema étnico. Há lugares grandes, dramáticos: Caxemira, Palestina. Mas em cada canto do mundo marcado por uma antiga história, alguém sempre vai perder a humanidade, a felicidade estará sempre comprometida. Como escritora, penso ser importante retratar esses dilemas morais, para não simplificá-los. O que pensa da escrita de V.S. Naipaul, especialmente de sua habilidade em traçar paralelos entre as experiências pós-coloniais na América Latina, África e Ásia? Naipaul é o primeiro escritor que conheço que mostrou esse paralelo e sua relação com o Ocidente. Seu trabalho alterou a forma com a qual eu quis escrever sobre a Índia e sobre a questão de ser indiano no mundo. Não me parecia justo prender meu trabalho a apenas uma única posição. A perspectiva étnica de um texto muda, acredito, quando alguém se força a ter acesso a um ajuste mais amplo. É importante traçar as linhas entre pessoas e lugares de lados opostos do mundo. Você se sente liberada por ter dupla cidadania? Isso me abriu portas de várias maneiras, além de ter sido uma experiência desconcertante. Eu pude escrever sobre um mundo mais amplo, tive a liberdade de mudar, ganhei a riqueza da experiência - mas também fui refreada pela realização da perda, de nunca ser hábil para escrever uma história inteira e nunca ter a possibilidade de escrever sem uma certa amargura que provém de uma difícil perspectiva. Também sei que, embora essa capacidade de viajar possa significar certa liberdade para alguém de uma classe privilegiada, para muitas pessoas de classes mais pobres, esse movimento não significa ter liberdade. É mais a indicação de uma armadilha. Seus anos de formação foram passados no exterior. Assim, há alguma razão em particular de seus livros se passarem na Índia? Descobri que era preciso retornar à Índia para completar todos meus argumentos. Afinal, o mundo ocidental podia oferecer apenas uma parte desse retrato - a outra metade da história continuava presa ao outro lado do globo. E, também, para conseguir a profundidade emocional e entendimento histórico, precisei voltar à Índia dos meus pais, dos meus avós. Portanto, esse livro foi uma viagem às origens, ao fato de ser indiano. Uma reafirmação que começou, penso, dentro de mim mesma, depois de me assegurar que estava vivendo na América. Quando você escreve sobre você mesma, é possível atingir o extremo? O isolamento é essencial para se escrever. Esse afogar-se na própria consciência permite viajar para além, para algo mais profundo, para aqueles lugares excêntricos e embaraçosos que imagino atacados pela erosão que é viver sob o olhar do público. Sinto falta do tempo em que a ficção era mais estranha. Há alguma perda no fato de você ser imigrante? Acho que sempre há ganhos (a riqueza da experiência, o humor das contradições, os desentendimentos) e perdas. Haverá sempre o aspecto de viver meia vida, de ter apenas a metade da história para contar. Tendemos a esperar por uma simplicidade da verdade, uma integridade que raramente nos é dada. Meu livro examina vidas que são forçadas, por conta das circunstâncias, a tenderem à hipocrisia, às aberturas e aos medos, ou às verdades que não podem simplesmente ser alcançadas e acrescentadas acima de qualquer confiança. Os personagens entram em conflito com as idéias dos outros ou então pertencem a histórias e tempos que se perderam ou foram esquecidos. A alegria pode ter uma pequena dimensão. E conquistar um mundo mais amplo pode comprometer isso No livro, há também globalização, terrorismo e constatação de desigualdade social. Por que escolheu temas tão pesados? Não foi consciente. Eu estava escrevendo sobre uma família. Mas, se alguém escreve sobre pessoas que viajam e trafegam entre dois mundos, automaticamente cai em grandes debates de classe, raça, imigração, o medo que nasce da obrigação de compartilhar. Qual era sua expectativa de voltar ao Brasil? Você conhece algum romance brasileiro? Fiquei maravilhada por voltar a esse belo país. Eu me sinto afortunada. Fico feliz que festivais literários estejam proliferando fora da Europa e dos Estados Unidos. O Sri Lanka já tem o seu, a Índia dispõe de vários, assim como China, África do Sul. Sobre literatura brasileira, sim, conheço. Li Jorge Amado como todo mundo. E admiro muito Milton Hatoum, assim como poetas: Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade. Aliás, tenho sempre ao meu lado uma antologia de poesia brasileira.

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