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Escritor superou tragédias movido a literatura

Por Agencia Estado
Atualização:

Duas guerras mundiais, dois exílios, o suicídio de duas irmãs e de um filho, diversos casos de alcoolismo e drogas (morfina) na família, um câncer de pulmão, hipocondria, várias mudanças (três delas de um país para outro), incontáveis viagens, desentendimentos com o irmão (o também escritor Heinrich Mann), o drama do homossexualismo reprimido. Na vida do escritor alemão Thomas Mann, as tragédias e atribulações foram inúmeras, mas ele conseguiu atravessá-las incólume ao longo de 80 anos, sempre a bordo de um "barco" que era a única coisa realmente sólida e inabalável em sua vida: a literatura, para quem parece ter vendido a alma, da mesma forma como o Fausto vendeu a sua ao demônio. Era na literatura que Mann concentrava todas as forças, chegando muitas as vezes a chocar os amigos por causa da frieza com que reagia às tragédias a sua volta. "Amá-lo, meu querido, é uma arte refinada que não está ao alcance de qualquer um - uma dança-solo, de enorme complexidade", diria em 1941 sua grande amiga e admiradora Agnes Meyer. Não por acaso, uma frase similar - "um homem mais fácil de ser admirado do que de ser amado" - seria dita por seu biógrafo, o inglês Donald Prater, no prefácio do livro Thomas Mann - A Life, que sairá em outubro no Brasil pela editora Nova Fronteira, com o título Thomas Mann - Uma Biografia. Em entrevista ao Estado, Prater revelou que, ao fazer a pesquisa para o livro, se surpreendeu com a frieza de Mann. "A impressão de que ele era um homem frio, egocêntrico e vaidoso foi crescendo à medida que eu pesquisava", admitiu. Publicada originalmente pela Oxford University Press, da Inglaterra, a biografia é uma minuciosa reconstituição da vida de Mann, desde seu nascimento em 6 de junho de 1875, em Lübeck, até a morte na Suíça, menos de dois meses depois de completar 80 anos. Seu autor - que escreveu também as biografias de Stefan Zweig (European of Yesterday, de 1981) e de Rainer Maria Rilke (A Ringing Glass, 1986) - está hoje com 82 anos e é impressionante imaginar como ele conseguiu forças, em idade tão tardia, para reunir a gigantesca quantidade de informação que consta do livro. O próprio Prater, no prefácio, admite ter pensado que não chegaria ao fim: "Quando li os diários de Mann do ano de 1948, dei-me conta de que estava exatamente com a idade dele então (73 anos) - e pensei que talvez não tivesse outros sete anos pela frente, como ele tivera, para completar a enorme empreitada ainda a ser cumprida." E que empreitada. Prater chega a minúcias em suas descrições, falando até dos resfriados de membros da família, dos biscoitos de gengibre de que Mann gostava para acompanhar o chá, ou de sua canção popular predileta (Don´t Put Your Daughter on the Stage, de Noël Coward). Embora sem importância na história, esses detalhes ajudam a pintar o panorama de cada época, transportando o leitor para o universo narrado, como só acontece nas boas biografias. Prater consegue também alinhavar com maestria os fatos da vida pessoal ao processo de elaboração da obra de Mann, mostrando quanto ele usou a vida real como matéria-prima para sua ficção, o que incluiu até receitas culinárias antigas que sua mãe guardava. E tudo isso tendo como pano de fundo os fatos históricos, o que, no caso de Mann, tem um peso extraordinário, considerando-se que em sua vida adulta ele assistiu à virada do século, atravessou a 1.ª e a 2.ª Guerras Mundiais, viu surgir a bomba atômica, enfrentou a guerra fria e só por pouco perdeu o lançamento do Sputnik (morreu dois anos antes). Na entrevista que deu ao Estado, Donald Prater comentou que, sendo também autor de uma biografia de Stefan Zweig, ficou chocado com a reação que o suicídio deste provocou em Mann. Ao saber da morte de Zweig, que durante a 2.ª Guerra Mundial se exilara no Brasil, Mann ficou furioso, dizendo em cartas a amigos e em suas anotações que era "imperdoável dar aquele triunfo aos nazistas". Mann não perdoou Zweig por sua atitude, classificando-a como uma traição a outros exilados que estavam em situação ainda mais difícil. "A reação de Mann provou que ele sentia desprezo por Zweig", disse o biógrafo. A frieza de Mann manifestou-se ainda na maneira como reprimia suas tendências homossexuais, não deixando jamais que as paixões platônicas por jovens rapazes se realizassem e jogando-as na literatura ou em seus diários secretos. "Embora Mann exercesse uma espécie de autocensura até mesmo nos diários (só abertos 20 anos após sua morte), não encontrei nenhuma evidência de que ele tivesse tido algum caso de amor homossexual na vida real", disse Prater. "Nem mesmo no episódio do jovem garçom por quem Mann se apaixonou já no fim da vida e que ganhou enorme publicidade na época em que os diários foram abertos. Algum tempo depois, conseguiram localizar o garçom e ele foi entrevistado, mas não deu muita importância à história." As difíceis relações de Mann com o irmão Heinrich são outro assunto que tem grande destaque no livro. Segundo Prater, a rivalidade entre os dois não era tanto pessoal, mas sim política e literária, "embora, do ponto de vista literário, não haja comparação possível entre os dois". Em 1930, na época em que seu romance Professor Unrat foi filmado sob o título de O Anjo Azul, Heinrich Mann se tornou muito popular, "até mais do que Thomas", segundo o biógrafo. "Mas ele jamais vai voltar a ser uma figura reconhecida na literatura", acrescentou. Hollywood - Prater comentou também que, durante os anos de exílio nos Estados Unidos, Mann foi muito assediado pelo diretor Ernst Lubitsch para escrever roteiros de cinema em Hollywood (coisa que seu irmão fez, sem nenhum sucesso), mas jamais aceitou. "Thomas Mann resistiu com a maior tranqüilidade ao glamour do mundo do cinema, apesar dos esforços de Lubitsch e de outros magnatas da indústria cinematográfica. Isso porque, ao contrário de muitos outros europeus exilados, Mann não precisava do dinheiro efêmero que Hollywood lhe traria", disse. Apesar da relação difícil com o irmão mais velho, Thomas Mann parecia dar-se muito bem com a mãe, Júlia, nascida no Brasil, filha de uma brasileira e de um fazendeiro alemão. Segundo Prater, Júlia Mann falava português muito bem, embora tenha voltado para a Alemanha ainda criança, e certamente foi uma influência importante na vida do escritor. "O lado tropical e passional da mãe de Mann manifestou-se nele de alguma forma e seus diários secretos são uma prova disso", disse Prater.

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