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Escritor africano Ishamel Beah fala sobre Serra Leoa

O mais jovem convidado para a quinta edição da Flip fala sobre sua obra

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Por Redação
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Ishmael Beah está vivendo o que ele define como uma segunda vida. Aos 13 anos, sem pai nem mãe, mortos por soldados do exército rebelde de Serra Leoa, o jovem escritor viu-se repentinamente com uma arma nas mãos, fumando maconha, consumindo anfetaminas e matando seus compatriotas. Era isso ou a morte. Ishmael escolheu sobreviver. "Não tive escolha", diz o autor de Muito Longe de Casa - Memórias de um Menino Soldado (Ediouro), o mais jovem convidado para a quinta edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começou na quarta-feira,4. Seu livro autobiográfico conta a experiência traumática de quem matou para não ser morto, num país dominado por governantes corruptos e que espera, com as eleições de agosto, dar seus primeiros passos democráticos. Ishmael, aos 27 anos, não tem grandes esperanças nisso. Cansou de ver os diamantes de Serra Leoa alimentarem a cobiça de políticos que abriram contas na Suíça com o dinheiro que deveria sustentar hospitais e escolas públicas. "Eles são todos parecidos, gente que enfia dinheiro no bolso à custa da vida dos outros". Parece familiar? Ishmael teve a mesma impressão ao visitar uma favela carioca, logo ao desembarcar no Rio de Janeiro. "É um contraste violento com o que vi lá embaixo nas praias", comenta. Parece o Rio "Esse problema de corrupção parece ser também o de vocês, não?", pergunta o escritor, que lutou por três anos na guerra civil até ser resgatado pela Unicef em 1996 e adotado por uma família americana. Já era, então, um homem maduro e amargurado de 18 anos quando Laura Simms, sua protetora intelectual, levou-o para morar em Nova York, onde formou-se em Ciências Políticas há três anos. O livro Muito Longe de Casa funcionou como uma espécie de exorcismo do horror testemunhado pelo adolescente, que achou mais difícil ser reintegrado à civilização que se unir aos militares assassinos de indefesos civis em Serra Leoa. "Andávamos anestesiados, consumindo brown brown, uma mistura de cocaína com outras porcarias, o que nos alienava e impedia de ter consciência dos atos bárbaros que praticávamos", conta Ishmael, que nem de longe parece um guerrilheiro com centenas de mortes nas costas. "Simplesmente não queria viver mais e pouco me importava com o que via ou fazia, de tanto medo que sentia", resume. Ishmael não anotava histórias nem impressões de guerra. Ouvia histórias dos outros garotos que, como ele, foram empurrados para o campo de batalha e brutalizados pelo convívio com bestas humanas. "Estava tão alienado e desesperançado que nem me dei conta do esforço que as pessoas da Unicef faziam para me reintegrar socialmente", conta, lembrando com carinho de uma enfermeira chamada Esther, que o conquistou por meio da música, dando a ele um walkman para que ouvisse os rappers americanos de que tanto gostava. Em Nova York O escritor mora hoje no Brooklin, em Nova York, onde prepara um segundo livro, desta vez ficcional. Anda deslumbrado com a descoberta da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora de "Half of a Yellow Sun", saga de um garoto de 13 anos que se vê empregado de um professor revolucionário numa Biafra empenhada em ser uma república independente. Mas adianta que seu novo livro não será nada parecido com essa novela sobre o fim do colonialismo e o começo da responsabilidade moral de um povo. Esperança pode ser seu tema. Ficou muito comovido ao ver garotos de uma favela carioca, orientados por um voluntário, representarem uma cena da peça Noite de Reis, de Shakespeare. "Quando se dá uma opção dessa para um garoto sem recursos, e não uma arma, é possível falar numa segunda vida, como a que estou tendo agora", diz Ishmael, cuja maior ambição nesta Flip é encontrar o escritor e Nobel sul-africano J.M. Coetzee, uma das maiores vozes contra o apartheid em seu país. Ishmael admite que seu livro não vê a guerra civil de Serra Leoa com a mesma perspectiva política que Philip Gourevitch viu os massacre de Ruanda, até mesmo porque a sua é uma visão interna do conflito que levou mais de 300 mil crianças de seu país ao engajamento militar. "É difícil para um estrangeiro entender o que se passa na África, especialmente em Serra Leoa, onde era possível, antes da guerra civil, ser recebido numa outra aldeia com carinho fraternal", explica. "Não dava para acreditar que, de repente, tudo havia mudado, que todo aquele mundo de solidariedade havia acabado". Segundo o autor, sua adesão às Forças Armadas foi casual. Desiludido com a retórica dos revolucionários, que diziam estar a serviço de uma guerra contra políticos corruptos mas matavam civis inocentes, Ishmael engajou-se no Exército. Diz que foi resgatado por sorte dessa guerra, mas condena o programa de reintegração governamental de Serra Leoa, que, segundo ele, falhou miseravelmente ao tentar reabilitar jovens que, como ele, tornaram-se matadores. "Tive alguém que se dispôs a substituir minha família, mas esses garotos só têm a possibilidade de fazer um curso profissionalizante sabendo que, depois, nem emprego vão conseguir, já que Serra Leoa continua sob o domínio de políticos corruptos".

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