EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Escolher morrer

Aos 104 anos, o velho David Goodall afirmava: 'Eu não desejo mais continuar a vida'

PUBLICIDADE

Atualização:

Na semana passada comemoramos o Dia das Mães e os 130 anos do fim da escravidão. A pauta da crônica estaria feita não fosse o desafio de tudo alinhavar com a perturbadora notícia da morte assistida e programada (esse eufemismo para o suicídio) de David Goodall, um professor britânico de 104 anos. * A figura materna - aquela mulher que nos construiu e abrigou no seu corpo - é um emblema da vida. Ela fala da Virgem Maria Mãe de Deus, da padroeira do Brasil e da maternidade como a mediadora entre a vida e o nada.  Na minha vida, mamãe foi libertadora com o seu piano tocado com virtuosidade e amor. Era ela quem, ao entardecer, harmonizava nossa casa. * Entre essa mãe branca e livre e as mães escravas cujos filhos nasciam na iniquidade, há o fosso de uma desumana desigualdade até hoje predominante no Brasil. Muitos de nós conhecemos a ternura dessas mulheres na forma de amas de leite e empregadas. Trabalhadores pouco alcançados pelos ressentimentos de classe, que tanto têm marcado esse país de privilégios e de privilegiados mais conscientes dos seus direitos do que dos seus deveres. * Escravidão é, como disse o sociólogo de Harvard Orlando Patterson, morte social. Morte não escolhida e obviamente evitada como provam as fugas e revoltas de escravos em toda a parte. Aos 104 anos de uma vida aparentemente bem-sucedida, o velho David Goodall afirma: “Eu não desejo mais continuar a vida” e - eis o que me mobilizou - “estou muito feliz de ter a oportunidade de terminá-la”. Como compreender essa busca da morte? Como situar tal serenidade num mundo cuja cosmologia afirma a imortalidade como prêmio e o cerne da Salvação? Num outro mundo, é claro. Num mundo onde não há escravidão, nem maternidades a serem comemoradas, porque ninguém nasce no “outro mundo” (esse universo das coisas perfeitas e eternas como disse Platão e repetem os nossos credos). * Surpreendeu-me a morte assistida de um idoso vivendo um estágio da existência concebido como de reconciliação no qual a morte física não seria mais tão tenebrosa, pois, como o próprio Goodall remarcou, a velhice (e disso eu entendo!) nos leva para fora da vida.  O que é extraordinário no caso é o escolher quando (e como) morrer - esse apanágio dos suicidas que, por mil motivos, exerceram o absurdo de sua liberdade; ou para ficar mais próximo de Albert Camus, a liberdade como um absurdo - como um paradoxo filosófico do tamanho de um bonde. * Émile Durkheim distinguiu dois tipos de suicídio. O mais conhecido seria o resultado de uma brutal ausência de solidariedade. O menos falado e o mais intrigante seria o suicídio altruísta ou de honra, feito para reparar a própria dignidade; ou a honra do grupo maculada pelo suicida que oferece a própria vida para reparar o mal que causou. O maior exemplo de altruísmo é o sacrifício de Jesus Cristo pela humanidade; e o de Maria e de todas as mães que sofrem com a morte daqueles que saíram do seu corpo. Num outro plano, o nascimento na iniquidade da escravidão levou muitos ao suicídio. Ao uso de sua liberdade existencial para a morte como uma saída e uma escolha. Afinal de contas, é melhor morrer do que viver como “coisa” de um senhor. * A modernidade é feita de infinitos direitos individuais que contestam valores criando, porém, novas obrigações. Direitos se ligam a escolhas. E a deveres. Se podemos escolher gêneros e - nos limites do bem senso e do ridículo - a idade, por que não ter também o direito de morrer?  A decisão de David Goodall assombra, mas o direito de morrer é aceito nos fumantes inveterados, nos que abusam do álcool, nos que comem além da conta e naqueles que são convocados a morrer pela pátria ou por uma causa. A conversão integral a uma causa suprime a liberdade e a responsabilidade. Da perspectiva da “causa”, não matamos seres humanos, mas perigosos subversivos. Quem justifica a exceção é o ideal de pureza ou a libertação dos oprimidos. A surdez ideologia sempre conduz ao que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Nessas estruturas, o mal torna-se tão plausível quanto uma mala cheia de dinheiro...  Os autocratas sabem tudo - eles dominam os fatos - mas não assinam nada... * Se não escolhemos a vida, não seria justo poder escolher, como fazem os heróis, os mártires, os ativistas e os sofredores, a morte?  O ato da morte consciente deve ter acompanhado muitos suicidas. E a negação do direito de morrer é mais evidente em sistemas nos quais a vida tem que ser suportada a qualquer preço, sem reclamação e revolta, como o nosso. Algo perfeito num universo escravocrata e paternalista. O que mais perturba na morte assistida é a afirmação de que tanto a morte quanto a vida são imanentes. Vivemos relacionados aos outros. Mas quando não se quer mais viver assim não seria legítimo morrer? 

Opinião por Roberto DaMatta
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.