Escocês Batchelor desafia cromofobia urbana em mostra com pinturas suas

Obras do crítico, que tem livros traduzidos no Brasil, exploram a cor como luz

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Por Antonio Gonçalves Filho
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No fim dos anos 1990, o artista e crítico escocês David Batchelor lançou um antológico livro (traduzido pela Cosac Naify) chamado Minimalismo, em que, para choque dos leitores, começava por dizer que há um problema com a arte minimal: “Ela nunca existiu”. Por que, então, escrever um livro sobre algo que jamais existiu? Batchelor, avesso a rótulos, responde, ao vivo: “Porque se trata de um rótulo enganoso, que agrupou artistas com algo em comum, mas não homogêneos”. Batchelor não responde diretamente a Richard Wollheim, que criou o termo “minimal art” em 1965, mas confirma a suspeita de que o minimalismo não existiu como movimento, embora seu lema “less is more” (menos é mais) tenha sido seguido pelos cinco artistas analisados no livro: Carl Andre (1935), Dan Flavin (1933-1996), Donald Judd (1928-1994), Sol LeWitt (1928-2007) e Robert Morris (1931).

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A despeito de não existir consenso sobre o que foi a arte minimal, é possível atestar ainda hoje certa ressonância da mesma, que recorre a formas simples, rejeita a ornamentação e não disfarça os materiais que usa. O próprio Batchelor, que, além de crítico e professor, é artista, pisa no mesmo terreno “minimal” de seus analisados. Presente em mostras internacionais – ele esteve na 26.ª Bienal de São Paulo – e representado no Brasil pela galeria Leme, Batchelor está de volta a São Paulo, onde inaugura nesta quinta (15) uma mostra, digamos, “minimalista” com trabalhos seus, no Centro Universitário Maria Antonia, que também recebe em outra de suas salas as pinturas de Rodrigo Andrade.

Batchelor, professor do Royal College of Art de Londres, fez, no centro universitário da USP, uma palestra sobre a relação entre o ambiente urbano e as cores, explorando um tema abordado em seu livro Cromofobia (lançado em 2007 pela Editora Senac). Antes, concedeu uma entrevista ao Caderno 2, em que discutiu o argumento central de seu exaustivo estudo sobre o medo das cores que humanos têm desde tempos imemoriais, a ponto de atribuir a elas poderes malignos. E as cores, diz ele, continuam marginalizadas nos ensaios críticos. “No século 19 elas ainda eram estudadas por filósofos, mas foram expurgadas da academia no século seguinte, e, hoje, poucos se preocupam com o que há por trás da cromofobia.”

Sua exposição é o oposto disso. Batchelor, decididamente, não tem medo das cores – e tampouco atribui a elas poderes sobrenaturais. Desde 1997, ele vem fotografando formas quadradas e retangulares brancas nos centros urbanos, coladas a paredes de tijolos aparentes, portas e até janelas de automóveis. São mais de 500 fotos, reunidas num livro (Found Monochromes, Ridinghouse, 2010) em que discute com o filósofo Jonathan Rée o monocromatismo das grandes cidades. “São Paulo, por exemplo, é cinza, cor de concreto.” Ou seja, é a total ausência cromática. Não que Londres, a cidade que adotou, seja mais colorida. No entanto, Batchelor conseguiu impor sua farra cromática na desativada estação de Gloucester Road do metrô, em 2005. Em dez nichos, ele instalou obras suspensas de formas elementares, feitas em aço ou alumínio que, iluminadas por trás, revelavam a silhueta desses objetos. Ou seja: eram simultaneamente peças escuras e brilhantes, sugerindo uma analogia com as luzes noturnas da grande cidade cinzenta.

Batchelor usava nessas estruturas material descartado pela companhia do metrô londrino. O uso do ready-made fazia referência direta ao procedimento de um dos estudados em seu livro Minimalismo, Dan Flavin, pioneiro no uso artístico de módulos industriais e lâmpadas coloridas disponíveis no comércio – a cor, para Flavin, acentua o crítico, era uma espécie de ready-made. Mas, diferentemente de Flavin, a obra artística de Batchelor não despreza o caráter histórico. As pinturas que ele mostra no Centro Universitário Maria Antonia, analisa o próprio autor, têm algo em comum com o trabalho de Gloucester Road. “Elas lidam com a dicotomia entre luz e trevas, mas não num sentido metafísico”, observa. Assim como a “arte situacional” de Flavin, ele parece mais próximo da arte pop, que rejeita o simbolismo, o mistério cromático. “Hoje, o que mais me interessa é a autonomia da cor, o que me levou a estudar Andy Warhol”. E a gostar de Volpi, acrescenta.

Uma estrada feita de tinta e memória afetiva

Rodrigo Andrade é um dos grandes pintores sobreviventes dos anos 1980, época marcada pela ressurreição da pintura matérica criada pelo informalismo europeu e reinventada nas telas neoexpressionistas de gigantescas dimensões, associadas principalmente aos trabalhos iniciais de Nuno Ramos, seu amigo, que também abre quinta (15) mostra de desenhos na cidade. Rodrigo ocupa a sala vizinha de David Batchelor no Centro Universitário Maria Antonia. “Boa companhia”, observa o artista, espiando as telas do escocês através da porta de vidro.

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A companhia, de fato, não poderia ser melhor, mas a estrada de Rodrigo é outra. Não é a da abstração, como a de Batchelor. Coincidentemente, ela fica na Escócia, país natal do crítico que o pintor costumava visitar nas férias escolares, ao lado do pai. Na mostra, a estrada aparece coberta de neve, tão densa que não se conforma ao bidimensional da tela. Ela extrapola os limites do suporte, salta da superfície para conquistar o espaço, numa massa espessa de tinta que avança em direção ao espectador, como no cinema tridimensional.

Essa estrada guarda semelhança com o enquadramento convencional de cenas “on the road” no cinema, mas sua origem está numa das mais conhecidas pinturas de Brueghel, Os Caçadores na Neve (c. 1565), que se encontra no Kunsthistorisches Museum de Viena. “Tarkovski, em Solaris, usa a tela de Brueghel para falar da solidão”, observa o pintor, que faz, na mostra, uma viagem progressiva da desolação invernal para a luz tropical das estradas do interior do Brasil, até chegar ao ponto limite, o oceano, território do indiferenciado que assume dimensão alegórica no filme de Tarkovski (o planeta de Solaris> é cercado de água, signo freudiano do inconsciente, mas uma entidade cósmica autoconsciente segundo o cineasta).

Rodrigo surpreendeu crítica e público ao mostrar há três anos, na 29.ª Bienal de São Paulo, a série Matéria Noturna, paisagens urbanas desoladas cujos traços só podiam ser identificados quando o espectador se aproximava das telas. Nas paisagens invernais, o público também só percebe a camada tridimensional da neve a poucos centímetros das telas. Em 2011, na Galeria Millan, que o representa, o pintor mostrou uma série de oito trabalhos igualmente dedicados à inconsolável memória proustiana: muros e velhas pontes de pedra que viu na Escócia nas viagens com o pai. É de camadas de tinta e memória afetiva que a pintura de Rodrigo se alimenta.

PAREDE POR PAREDE/PINTURAS DE ESTRADACentro Universitário Maria Antonia. Rua Maria Antonia, 294, 3123-5200. De 3ª a 6ª., das 10 h às 21 h; sáb. e dom., das 10 h às 20 h. Grátis. Até 13/10. Abertura quinta (15), às 20 h

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