Erros na mostra "Brazil:Body and Soul"

A megaexposição Brazil: Body and Soul, aberta no dia 18 no Guggenheim Museum de Nova York, contém erros, equívocos e restrições curatoriais

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Por Agencia Estado
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Embora elogiada pelo The New York Times e por diversos veículos de comunicação, a megaexposição Brazil: Body and Soul, aberta no dia 18 no Guggenheim Museum de Nova York, contém erros, equívocos e restrições curatoriais. É inegável que representa um formidável esforço de divulgação da arte brasileira no exterior, mas há deslizes. Um simples exame no catálogo da exposição, que é vendido pelo Guggenheim Museum ao preço de US$ 80, mostra pelo menos um erro grosseiro. Na página 238 do catálogo, um texto do curador-convidado Edward J. Sullivan, professor da New York University, revela que o maior artista do barroco brasileiro, o Aleijadinho, teve como mestres "Rodrigo Melo Franco de Andrade e Francisco Xavier Brito". Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) foi de fato grande incentivador das artes em Minas Gerais. Foi o primeiro diretor do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, em 1936, escolhido pelo então ministro da Educação, Gustavo Capanema. O problema é que ele nasceu quase um século depois do Aleijadinho (1730-1814). E o Aleijadinho não teve aulas com Francisco Xavier de Brito - quando este morreu, Aleijadinho tinha 12 anos. Um vivia no Rio, outro em Minas. Outra confusão grave é a da atribuição de autorias, também no segmento do barroco. Uma obra polêmica, cujas características já foram discutidas amplamente na imprensa brasileira e que tem a autoria contestada, o Cristo da Ressurreição, do século 19, é dado como um Aleijadinho legítimo pela curadoria da mostra nova-iorquina. Ocorre que a mesma BrasilConnects, empresa que promove a mostra, já tinha dado status diferente à obra quando a expôs no Maranhão, na exposição Brasil + 500, em março. Em um espaço de oito meses, o Cristo da Ressurreição deixou de ser uma peça "atribuída a Aleijadinho" para virar um autêntico Aleijadinho. Ângelo Oswaldo, conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), chamou a imagem de "Cristo bexiguento" recentemente. E a historiadora Sônia Maria Fonseca, da Universidade Estadual de Campinas, afirmou que essa é uma "atribuição duvidosa" (no artigo "Universo Mágico do Barroco Brasileiro", publicado na "Nova Revista de Arte e Arqueologia"). Há diversas obras em Nova York que alimentam as controvérsias. A curadoria resolveu "reconhecer" como autênticas obras canhestras como o "Busto de um Santo", realizada entre 1775 e 1785. Peças tombadas recentemente pelo Iphan e com autoria definida por juntas de especialistas são dadas como "atribuídas a Aleijadinho". Uma obra que teve sua autoria atestada, ironicamente, por Rodrigo Melo Franco de Andrade, Nossa Senhora das Dores, do século 18, é tida como "atribuída a Aleijadinho". Os critérios são difusos e sem lógica. Edward J. Sullivan também afirma que o Aleijadinho teria morrido "de lepra ou sífilis", quando já ficou demonstrado que ele tinha um problema de circulação sanguínea periférica, que causava gangrena e obrigava a amputação da extremidade dos membros. A exposição Body and Soul também sofreu desfalques importantíssimos na sua estrutura. Duas das melhores obras de Tarsila do Amaral, O Vendedor de Frutas (1925) e Urutu (1928), constam do catálogo, mas não estão na mostra. Foram resgatadas pelo colecionador Gilberto Chateaubriand antes mesmo de serem desencaixotadas em Nova York. "Não vou fazer heroísmo cultural à custa de obras brasileiras dessa singularidade", disse Gilberto Chateaubriand à reportagem. Ele afirmou que as obras foram a Nova York contra sua vontade, "malgrado meus telefonemas", e que ele exigiu seu retorno. O diretor da BrasilConnects, que organiza a mostra, chegou a pedir que elas ficassem pelo menos por quatro dias, mas Thomas Krens, diretor do Guggenheim, ligou em seguida para Chateaubriand e disse que por quatro dias não interessava. Problemas de curadoria são apontados por José Neistein, Ph.D. em filosofia e história da arte pela Universidade de Viena professor de história da cultura brasileira na Universidade da Pensilvânia (Filadélfia) e atual diretor do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, ligado ao Itamaraty. Segundo Neistein, o maior equívoco da exposição é a ausência dos pintores brasileiros do século 19, como Almeida Júnior e Pedro Américo. Ele enxerga um "preconceito forte" da curadoria, já que houve um grande esforço em trazer obras de Albert Eckhout e Frans Post. "Os viajantes trazem a visão estrangeira do Brasil, mas está faltando o olhar castiço dos brasileiros", disse Neistein. "Há todo um clima sociopolítico e psicológico e um indício da tropicalidade do Brasil nas obras daqueles nossos pintores, mas eles preferiram os europeus", afirmou. Ele também viu com ressalvas a ausência de pintores naturalistas do século 18 na mostra, que são importantes principalmente pela documentação da fauna e da flora do País. Entre aquilo que Neistein assinala como "desigualdades" de representação, está a fraca presença de obras de Emiliano di Cavalcanti e Cândido Portinari na exposição em detrimento da grande delegação de artistas jovens do País, como Beatriz Milhazes e outros. "Deram mais espaço a eles que a obras de Guignard, que só tem dois quadros na mostra, ou a Di Cavalcanti ou a Portinari, o que é uma desproporção", assinala o historiador. Dar a Lygia Clark ou Hélio Oiticica mais destaque do que a obras de Brecheret e Guignard é um desserviço à compreensão da arte brasileira, segundo Neistein, embora ele ressalte que ambos são extraordinários. A preocupação do historiador é que Lygia e Oiticia já tiveram exposições individuais recentes em Nova York e suas instalações mostram algo muito familiar aos americanos. Ele também critica a forma como a arte popular é disposta em Body and Soul. Ela está representada apenas pela escultura - caso do ex-votos e das carrancas - e não pela pintura. E a arte barroca brasileira, segundo o especialista, tem uma parte popular e uma parte mais erudita. Em Nova York, privilegia-se somente o aspecto primitivista, ingênuo, e a arte popular "não aparece como criatividade legítima do povo brasileiro, mas como um subproduto do barroco". Neistein também não poupa restrições ao trabalho de Jean Nouvel, o arquiteto francês responsável pela cenografia da mostra. Nouvel fez o Guggenheim pintar suas paredes de preto para receber a mostra. "O que caracteriza o Brasil é justamente a luminosidade", diz ele. "Mas, se ele decidiu por isso, deveria pelo menos ter posto iluminação de qualidade - não se consegue distinguir os pormenores, os detalhes, e muito menos ler as etiquetas das obras." A mostra Brazil - Body and Soul, na avaliação de Neistein, é contudo uma exposição que traz um saldo favorável para a arte brasileira. "É mais positivo que negativo, mas poderia ser bem mais afinada do que está sendo, e mais abrangente", ele conta. "De qualquer forma, o impacto global é muito bom." Neistein é também editor para assuntos de arte brasileira da biblioteca do Congresso, em Washington, e publicou diversos livros sobre o tema, como A Arte no Brasil dos Primórdios ao Século 20 (Cosmos Editora). Levou 20 anos de pesquisas para concluir esse último.

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