Erica Jong faz de Hillary Clinton vítima

Em O Que as Mulheres Querem?, seu novo livro, a escritora dedica um capitulo à ex-primeira dama dos EUA, comparando-a a Joana d´Arc: "Ela aceita ser queimada, semana sim, semana não, para que seu marido suba nas pesquisas de opinião"

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Por Agencia Estado
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Hillary Rodham Clinton é uma mulher admirável, saibam, porque suportou com estoicismo tudo o que o marido fez, em nome de um futuro melhor para as mulheres americanas. Fez silêncio e segurou a mão do marido, enquanto ele admitia que a havia magoado - mas tudo isso fazia parte de um projeto. E o projeto era fazer com que o marido permanecesse no poder, já que seu programa de governo era feminista. Simples, assim. Ou, pelo menos, é o que diz Erica Jong, em seu novo livro, O Que as Mulheres Querem?. Hillary, diz a escritora, mostrou ao mundo, às americanas, em especial, "as estranhas concessões que as mulheres talentosas fazem". Pobre Hillary. Deixou-se "deformar", deixou que sua imagem fosse modificada ao longo do período de poder do marido - "Como uma antiga nobre chinesa, com os pés deformados" - em nome de um ideal feminista. "Deveríamos chorar por Hillary Clinton, em vez de insultá-la. Ela é um exemplo perfeito de o quanto a vida é dura para as mulheres inteligentes", escreve Erica Jong. "Uma mulher é sacrificada pelas ambições do marido. Para mim, Hillary Rodham Clinton se parece, cada vez mais, com Joana d´Arc. Ela aceita ser queimada, semana sim, semana não, para que seu marido suba nas pesquisas de opinião." Culpada por definição - A lenga-lenga expande-se por quase 30 páginas do capítulo intitulado A Dama Maldita: As Vicissitudes de Ser Hillary Rodham Clinton. Neste espaço, a escritora cria algo que poderia ser chamado de o "Paradoxo de Hillary". Ela é vítima de uma cultura que a faz "culpada" por definição - já que é inteligente e talentosa. Dela, cobram-se "provações intermináveis e impossíveis, como aquelas arquitetadas para as bruxas por seus inquisidores". Ela precisa se anular para que um dia a América amadureça e possa ter uma mulher como presidente. É como termina o capítulo. O "Paradoxo de Hillary" é apenas uma das muitas conclusões-por-oclusão contidas em O Que as Mulheres Querem? um livro de 24 capítulos - 24 assuntos -, divididos em três partes: Poder, Sexo e Pão & Rosas. Serve também como parâmetro para o livro. Em todos os capítulos, a autora esconde, altera, adultera algum fato, retorce algum raciocínio para chegar à conclusão de que... de que mesmo? De que as mulheres, na sombra, conduzem o mundo. Um dia, assumirão o poder. Nem que, para isso, tenham de fingir, distorcer fatos, omitir opiniões, sair de cena. É o feminismo de resultado. Erica Jong ficou famosa em 1975, quando Medo de Voar publicado dois anos antes, entrou para a lista dos mais vendidos nos Estados Unidos e ganhou mundo. Entre outros motivos porque famosos como John Updike e Henry Miller viram, na história, o nascimento de um novo feminismo - bem-humorado, espontâneo, sem ranço acadêmico. Medo de Voar olhava o sexo de frente como nenhum outro livro escrito por mulher havia feito - nenhum outro livro que tenha ficado famoso, pelo menos. Era uma história biruta, deliciosamente bem escrita. Isadora Wing tem medo de voar. Está num avião com oito psicanalistas, um deles meio oriental, seu marido, com quem está insatisfeita. Os outros oito já haviam cuidado profissionalmente de seus problemas. Isadora Wing é poeta e jornalista. Está indo a Viena para cobrir um congresso de psicanálise. Lá, conhece um inglês psicanalista, bonito e impotente. Resolve, digamos, curá-lo. Com palavrões, provocações, ações agressivas. Muitas cenas de sexo detalhadamente descrito depois, descobre que o cara não era impotente. Queria conquistá-la. E vai para os braços da namorada. E ela não volta para o marido. Mas ela sai ganhando. Prazer. E perde o medo de voar. Foi usada como objeto? Melhor, aproveitou e tirou lucro. O livro funcionava também como crítica à psicanálise. Erica Jong judia, loura, bem-nascida, parecia uma espécie, mesmo que não com tanto brilho, de Philip Roth com decote provocante - o que a tornava ainda mais ofensiva para o feminismo militante. Mas, olhando à distância, e à luz dos títulos mais recentes, percebe-se que já no Medo de Voar Erica Jong pregava o resultado. Mas tinha humor; não posava de sacerdotisa do novo comportamento feminino (até porque Isadora Wing vivia uma vida muito parecida com a de Erica: ela jamais escondeu o fundo autobiográfico da história). Sacerdócio - Seus livros do início dos 80 para cá são exercícios de sacerdócio. A autora se considera a porta-voz das mulheres - e pronto. "Desde que meu primeiro romance fomentou uma espécie de revolução na consciência, fui capaz de acalentar, por algum tempo, a ilusão de que a palavra mudava o mundo", escreve, no prefácio do novo livro. "Depois, me desiludi. Agora voltei a confiar, outra vez, na palavra, embora de maneira mais modesta." Este "maneira mais modesta" é como a abnegação de Hillary. Serve a um propósito: Erica Jong está dizendo que não é dona da verdade, mas que sabe mais do que suas leitoras e vai dividir com elas a sabedoria. Nas quatro páginas do prefácio cita Flaubert, Mark Twain, Anaïs Nin, Henry Miller, Vladimir Nabokov, Anthony Burgess - como ela sabe coisas, não é? Foi à Casa Branca, escreve em Veneza, porque lá é que é o lugar bom para se terminar um romance - ora, pois. Pior ainda são os rasgos de literatice - Erica fez a pazes com a mãe, que já passou dos 80 anos. Diz, da relação de hoje: "Somos muito ternas uma com a outra, como unicórnios de vidro que podem quebrar os chifres num beijo apaixonado." Unicórnios de vidro? Ou das gerações sucessivas de mulheres na família - ela tem uma filha: "Partilhamos o mesmo DNA, os mesmo sonhos, a mesma ousadia" - triste epitáfio da revolucionária, hoje patronesse de consultório sentimental. O Que as Mulheres Querem?. De Erica Jong. Tradução de Lourdes Menegale. Record, 269 páginas, R$ 28

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