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Luzes da cidade

Equação diferencial

"Nunca houve uma democracia que não tenha cometido suicídio.” (John Adams, segundo presidente norte-americano, em 1814).

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Um momento ilustrativo da consagração de Donald Trump como candidato do Partido Republicano foi o incidente de quinta num voo de Filadélfia, na Pensilvânia, para Syracuse, no Estado de Nova York.

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O homem moreno de cabelo cacheado sentou-se ao lado de uma loura no avião. Ela resolveu puxar papo. Ele queria ficar na dele, ocupado com o que escrevia e respondeu, monossilábico, com sotaque.

Ela não entendia o que ele escrevia e ficou nervosa. Entregou um bilhete a um membro da tripulação. O avião atrasava. Começou a se afastar do portão, de repente, voltou. A mulher foi retirada primeiro, tinha alegado estar passando mal. E veio a surpresa: o piloto se aproximou do homem de cabelo cacheado e ele também foi escoltado para fora do avião. Tinha sido denunciado pela passageira por causa daquelas anotações.

Interrogado, caiu na gargalhada: era matemática. O homem é o premiado matemático italiano Guido Menzo, professor da Universidade da Pensilvânia. Ele tentava resolver uma equação diferencial.

Mas a equação que, no momento, não tem solução é a que mistura anti-intelectualismo (álgebra confundida com árabe) à xenofobia vitaminada pela associação ao terrorismo.

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Que melhor síntese da campanha do homem que promete excluir 1.6 bilhão de muçulmanos, construir um muro na fronteira do México, instiga violência em comícios e não descarta um ataque nuclear à Europa?

“Sério? E ele pode ganhar a eleição em novembro?” Variações destas perguntas têm dominado conversas entre norte-americanos e estrangeiros perplexos. Eu entendo. Há cerca de um ano, quando descobrem minha nacionalidade, os gringos assumem uma expressão de velório e perguntam o que foi feito do meu país.

O público aperta os cintos para a montanha russa de baixaria que virá no segundo semestre. Hillary Clinton, apesar de sua superioridade completa sobre um empresário escroque e extremista, não é nenhum Barack Obama. Ela é boa de briga e resistente, mas não vai se arriscar em voos de oratória, em parte porque, graças à invertebrada mídia que tanto promoveu Trump, ela é um alvo constante. Trata-se de uma imprensa política que vê equivalência entre os dois candidatos simplesmente porque são os favoritos dos dois partidos. Neutralidade disfarçada de objetividade. A qualquer momento, a gente liga a TV e ouve Trump dizer uma barbaridade diante de um repórter que não contesta ou reage com assombro, indignação. Arrisco dizer que Trump é quem fica assombrado com a facilidade com que mantém em cartaz seu Teatro do Absurdo. Pouco a pouco, desde a semana passada, republicanos vão se transformando em rinocerontes submissos, como no clássico do dramaturgo Eugène Ionesco.

Semana passada, a historiadora de Harvard Jill Lepore, que colabora com a revista New Yorker, lembrou um distante discurso de posse presidencial que nunca se tornou famoso. James Garfield ficou intimidado ao ler os discursos de Abraão Lincoln e quase desistiu de escrever o próprio. Afinal, numa manhã de 1881, disse o que devia ser dito: “A elevação da raça negra da escravidão ao pleno direito da cidadania é a mudança mais importante desde que adotamos a Constituição em 1787.” E, mais adiante: “Ela liberou o senhor e o escravo da relação que era injusta e enfraqueceu os dois.”

Lepore lembra que a questão central na possível elevação da primeira mulher à presidência, num embate com um adversário tão nefasto, é sobre a quem pertence o país. E a quem pertence, no século 21, o direito de governar os Estados Unidos.

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