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Entrevista: no encalço da filosofia de Camus

Michel Onfray, Pensador francês fala sobre livro em que analisa maneira como ideias do autor de O Estrangeiro foram deturpadas

Por MARTA FANTINI , PARIS e MARTA FANTINI É APRESENTADORA DO PROGRAMA O BRASIL EM PRETO & BRANCO (RÁDIO CAMPUS BORDEAUX )
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filósofo francês

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Dois filósofos franceses. Um oriundo de uma ex-colônia e outro do mundo rural. Dois filhos de empregadas domésticas. Dois discípulos de Nietzsche - de esquerda. Dois nomes a provocar polêmicas em torno de suas obras. Dois pensadores a enfrentar a ira e o desdém do círculo intelectual parisiense. Dois best-sellers. Ambos populares: Albert Camus (1913-1960) por ser o autor preferido dos franceses e Michel Onfray, 53 anos, por seu empenho em divulgar a filosofia.

Foi o choque provocado pelo resultado das eleições presidenciais de abril de 2002 que levou Onfray a lançar a Universidade Popular de Caen. Sua convicção: evitar que o partido de extrema direita chegasse novamente ao segundo turno de futuras eleições. Naquele mesmo ano, ele abandonou sua cátedra para seguir o modelo dos que, em fins do século 19, ensinavam, gratuitamente, diferentes disciplinas aos operários. Na sua especialidade, Michel Onfray apresentou a Contra-História da Filosofia, a partir de pensadores excluídos do ensino oficial. Suas conferências logo passaram a lotar anfiteatros com capacidade para mil pessoas.

Inserir o franco-argelino Albert Camus no programa de seus cursos foi um outro gesto político de Onfray. No final de 2009, o presidente Nicolas Sarkozy incitou inúmeros protestos ao declarar sua intenção de celebrar os 50 anos da morte do autor de A Peste (1947). Michel Onfray publicou, então, uma carta no jornal Le Monde intitulada "Presidente, torne-se camusiano", apontando-lhe todas as disparidades entre sua política, voltada para o liberalismo, e o engajamento de Camus contra as injustiças sociais.

Durante décadas, em razão de seu anticomunismo precoce, o autor de O Homem Revoltado foi considerado, pela esquerda francesa, partidário do consenso enquanto os intelectuais julgavam a obra do prêmio Nobel de Literatura de 1957 ideal para tema de exames colegiais, por ser "pouco atraente" após a adolescência.

É um pensador de outra envergadura que Michel Onfray expõe no recém-lançado L'Ordre Libertaire, La Vie Philosophique d'Albert Camus (A Ordem Libertária, A Vida Filosófica de Albert Camus). Fruto de horas de pesquisas para seus cursos na Universidade Popular de Caen, o livro tem recebido elogios quase unânimes dos especialistas. Já vendeu mais de 60 mil exemplares. Nada a estranhar. O Tratado de Teologia e O Crepúsculo de Um Ídolo venderam, respectivamente, 300 mil e 150 mil exemplares. Onfray, que estará no Brasil, em outubro, para o evento Fronteiras do Pensamento, e de quem a editora WMF Martins Fontes acaba de lançar Os Ultras das Luzes, concedeu a entrevista a seguir.

Ao ler A Ordem Libertária, tive a sensação de que você tece sua narração como uma tela ou uma teia. Você prende seu leitor em fios que o conduz da História da Filosofia à Filosofia na História. Seu livro sobre Camus não é uma biografia, tão pouco um ensaio clássico. Como você o define? Qual é o seu método de trabalho?

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Empreguei o mesmo método que uso há dez anos para a preparação dos meus cursos de Contra-História da Filosofia. Sempre leio a obra completa dos autores, na sua ordem cronológica, a correspondência e as biografias. Somente assim se pode compreender o sistema de seu pensamento. No caso de A Ordem Libertária, tive que pesquisar a trajetória política de Jean-Paul Sartre para reconstituir as críticas que infligiu a Camus. Meu livro é ao mesmo tempo uma biografia do homem e uma biografia de suas ideias.

No primeiro capítulo, você situa Camus na sensação. Para os mais simples dos mortais, a filosofia se encontra na razão. A sensação pode nos enganar por ser irracional. Outros pensadores franceses precederam-no na construção de uma filosofia dos sentidos?

É uma maneira francesa de filosofar, literária, compreensível e também pessoal, com um discurso elaborado na primeira pessoa do singular. Não há abuso de neologismo, de vocabulário técnico. Os filósofos franceses são pensadores do real, não estão tão preocupados, como os alemães, com a razão pura. Camus se inscreve nesta linhagem da filosofia francesa, clara e legível, abordando a emoção e a percepção.

Camus sofreu muita injustiça durante sua vida e mesmo após a sua morte. Por que ele foi tão criticado? Por outro lado, Camus também foi um crítico feroz. Suas críticas não revelariam um certo ressentimento?

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Jamais! O ressentimento foi algo que ele ignorou. Esse sentimento é contrário à fidelidade. Camus é fiel a sua mãe, a sua família, à Argélia. Ele é fiel aos pobres. Camus não tinha ódio, inveja ou ressentimento. Na sua obra completa não se encontra uma única linha escrita para se vingar. Para ele o máximo de felicidade se obtém com o mínimo de possessão. Camus é modéstia. Sartre, ao contrário, queria ser célebre. Ele não apreciava os burgueses, os patrões e a direita. Sartre era a favor da vingança e justificava a violência. Camus é contra a violência e a tortura. Ele não pôde aceitar a existência do Gulag. Em O Homem Revoltado, ousa criticar a violência soviética. Camus é da esquerda que chamo visceral, ele é contra a miséria e a exploração. Ele critica a esquerda sectária de Marx, de Lenin. A ruptura entre ele e Sartre se concretiza após o lançamento desse livro. Em seguida, Sartre vai se tornar seu maior crítico. Para o existencialista, Camus não é filósofo nem romancista, mas um simples pensador dos colonos da Argélia. Esta legenda negativa se propagou. Camus foi um filósofo digno, mestre de um estilo e um romancista criativo. Sartre construiu a imagem negativa de um homem de bem.

O manuscrito de O Primeiro Homem e um exemplar da Gaia Ciência de Nietzsche foram encontrados na cena do acidente que foi fatal a Camus. O que significa ser nietzschiano de esquerda?

Camus aborda Nietzsche de duas maneiras distintas. Antes da 2ª Guerra, o autor está na dinâmica de dizer "sim" ao mundo, no eterno retorno das coisas. Com a descoberta dos campos de concentração, não se pode nem imaginar que este tipo de horror recomece. Não se pode tolerar o intolerável. Para Camus, o essencial é evitar a barbárie e, para tanto, deve-se dizer sim à vida e dizer não a tudo que negue a vida. Camus considera a liberdade mais importante que o ideal de esquerda. Se tivesse que escolher entre a igualdade e liberdade, ele iria preferir a liberdade. Camus propõe um socialismo libertário, autogestionário, sem poder nem dominação. Uma visão do socialismo de Proudhon e não de Marx. Camus se engajou na Resistência enquanto Sartre não soube ver o incremento do nazismo, do fascismo italiano.

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Camus entrou no Partido Comunista para realizar a educação popular, seguindo o conselho de Jean Grenier, seu professor de filosofia do liceu. E dedicou o Nobel a Lucien Germain, seu professor do primário. Ele não teria transformado seus dois professores em pai na ausência do seu?

Com Germain, Camus descobriu as palavras e a literatura. Com Grenier, descobre Kant, Nietzsche, Platão, a música. Camus quis se engajar na esquerda e, apesar de ser anticomunista, Grenier o aconselhou a entrar no PC. Camus percebeu depois que se enganara. Foi uma decepção secreta, que se limitou a sua correspondência com Grenier.

Camus era pela supressão das fronteiras e pela construção dos Estados Unidos da Europa. Isso ainda será possível?

Ele queria uma Europa sem nações, o fim da pátria, dos conflitos, do capitalismo, dos arames farpados que cercavam os campos de concentração. A Europa é o triunfo do capitalismo desde o Tratado de Maastricht. A Europa atual é a Europa do dinheiro, dos mercados, das finanças. Hoje a Europa gera miséria e pobreza. Resta construir a Europa dos povos.

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