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Entre público e privado, jogo para compreender Hoover

Gostei: Luiz Zanin Oricchio

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Por Redação
Atualização:

J. Edgar não é um filme político, não no sentido tradicional que se atribui ao gênero. Ao invés de debruçar-se por completo sobre a persona política do personagem, Clint alterna os planos do público e do privado. Coloca-os em diálogo num processo em que um corrói o outro. Seu foco se dá numa zona intermediária da estrutura dupla, tornada clássica por Orson Welles em Cidadão Kane - a do homem de poder, miserável em sua vida privada. Em entrevistas, Clint não esclarece de todo o alcance do seu filme. Admite que admira Hoover por sua disposição ao trabalho, sua energia sem fim, seu engenho e inteligência na criação de novas formas em sua atividade. Ao mesmo tempo, o censura porque obviamente abusou do poder conquistado. E esse é um tema contemporâneo - e abertamente político, o do abuso do poder. Vê-se, de vislumbre, como Hoover manipula os poderosos para que ele próprio se mantenha no topo. Faz gravações ilegais, intercepta correspondência e tem imenso gosto por isso, manifesto na leitura da carta de amor endereçada pela esposa de Roosevelt a outra mulher, sua namorada. Que efeito não teria a revelação do amor lésbico da mulher de um político na América daquele tempo? E que efeito não teve sobre o próprio Hoover, cuja ambiguidade sexual o leva a se travestir? Essa a estratégia de Clint - desconstruir o mito jogando com a diferença entre sua face pública e a esfera privada. Um jogo de contrastes expresso no registro visual do filme, que se deve a Tom Stern. A maneira como Stern fotografa o rosto de DiCaprio exprime a duplicidade que não quer se entregar de todo, que vive em parte na luz e em parte na sombra. Clint destoa dos procedimentos contemporâneos na maneira geral de compor o personagem, isto é, de pensá-lo. Controverso, Hoover dificilmente seria objeto de uma hagiografia, aquele tipo de perfil de lado único com finalidade explícita de elogiar, santificar ou reabilitar. Seria mais fácil demonizá-lo, à luz dos ideais democráticos de clareza e transparência, tão belos como inatingíveis. Clint prefere evitar essas facilidades simplórias. Leva em conta a opacidade do poder e vê Hoover como um ser forte e fraco, grande e minúsculo ao mesmo tempo. Sempre é mais fácil atribuir aos monstros a presença do mal no mundo. Mais complicado é ver no mal, como no bem, manifestações do humano, de seres que partilham nossa matéria frágil e mesmas circunstâncias históricas.

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