Entre desenho e espinosa

A Alegria se inspira na animação de Miyazaki e na obra do filósofo

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Felipe Bragança embarca no domingo para Buenos Aires, onde vai participar, com Marina Meliande, de um debate com o crítico de Clarín, um dos principais jornais (o maior?) do país, sobre A Alegria. Durante quatro finais de semana, o filme terá exibições na capital da Argentina. É um avanço. No recente Festival de Gramado, diretores da Argentina, do Chile e de outras cinematografias latino-americanas queixaram-se de que o cinema brasileiro, com raras exceções - Cidade de Deus, Tropa de Elite (1 e 2) -, quase nunca circula em seus países.A Alegria estreia hoje em São Paulo, depois de percorrer o circuito dos festivais. Cannes, Roterdã e São Francisco foram alguns no exterior, Tiradentes, no Brasil. Vários elementos poderão sugerir que Bragança e Marina estão impregnados pelas experiências de Apichatpong Weerasethakul. O rio, a floresta, seres estranhos e movimentos de câmera ao som de drone music, tudo parece conectar A Alegria com Tio Boonmee, ou Mal dos Trópicos. Bragança, numa entrevista por telefone, diz que cada um é livre para fazer as conexões que quiser, mas ressalta - o jardim interno da casa, que lembra as florestas do autor tailandês, já estava num de seus curtas, bem antes que ele ouvisse falar de "Joe", como Api é chamado. A própria casa pertence à sua família e é ali que ele festeja seus aniversários, até hoje.O caso é tão bizarro que merece ser contado. Bragança havia combinado um horário para a entrevista. Na hora, o repórter liga e dá na caixa postal. Logo, a assessora de imprensa liga para dar um outro número. À espera do telefonema, o diretor resolveu dar uma "descidinha". Uma dupla numa bicicleta roubou seu celular. Imagens da vida cotidiana no Rio. O filme nasceu, como projeto, do desejo de Bragança de falar da cidade. Ele escreve o roteiro, Marina é sua interlocutora privilegiada. Os dois filmam juntos e, depois, ela faz a montagem (mas ele fica palpitando). Falar sobre a cidade, mas numa chave pouco banal. Os elementos cotidianos são subvertidos pelo fantástico. O filme nasceu de uma mistura que pode parecer extravagante - do desejo de conciliar a animação de Miyazaki e a filosofia de Espinosa. Não são muitos os diretores capazes de fazer essa ponte (e a sustentação oral de seus objetivos). Os jovens de A Alegria conseguem. O filme é sobre essa garota exasperada porque não consegue mais ouvir falar do fim do mundo. Seu primo leva um tiro na Baixada Fluminense e some. Aparece um misterioso visitante - quem é?É, no mínimo, curioso que A Alegria, por conta das idiossincrasias do mercado, esteja estreando no mesmo dia que Onde Está a Felicidade?, do casal Carlos Alberto Riccelli/ Bruna Lombardi. Alegria e felicidade parecem estados de espírito próximos, senão similares, mas não existem filmes mais diferentes. A Alegria fala de juventude - e também das relações entre pai e filha -, de mistérios. Por todos os lugares em que têm passado, Bragança e Marina sentem que os jovens são mais atraídos pelo clima do filme. O público mais velho muitas vezes fica desconcertado, mas participa do debate, sempre que ele se apresenta.O que mais perturba é a própria natureza dos personagens. Os jovens são muitas vezes confrontados com a violência - como o diretor, quando teve seu celular furtado. Na ficção, eles ficam dando voltas, impotentes para enfrentar/resolver a complexidade do mundo ao redor. Nada a ver com a urgência de um Bróder, de Jeferson De, por exemplo. A pegada de Bragança e Marina é mais poética.No Brasil - e em Tiradentes, o festival, por excelência, do cinema de invenção -, a conexão de A Alegria com Apichatpong Weerasethakul foi muito comentada. Em Cannes, Bragança admite que se surpreendeu com outras conexões que foram feitas - e nas quais ele nem havia pensado. O cinema brasileiro dos anos 1970, um tanto de Júlio Bressane, tudo bem, mas o cinema português contemporâneo? Pois o que os críticos franceses viram foi um fantástico próximo ao de Manoel de Oliveira, que naquele ano, apresentava O Estranho Caso de Angélica, e Miguel Gomes, de Aquele Querido Mês de Agosto. Apesar dos jovens, o elenco é dominado pelos veteranos - e Maria Gladys, mais até do que Márcio Vito, também muito bom, humaniza cada cena em que aparece. "Tivemos muita sorte de contar com esses atores extraordinários", diz Bragança.A ALEGRIADireção: Felipe Bragança e Marina Meliande. Gênero: Drama (Brasil/ 2010, 100 minutos). Censura: 14 anos.

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