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Entre a fleuma e o ritmo, surge Souleyman

Sírio que se tornou estrela mundial da música eletrônica estreia em São Paulo

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Quando de sua segunda apresentação nos Estados Unidos, em 2010, o músico sírio Omar Souleyman já demandava um admirável esforço de compreensão. Quem era, afinal, o fleumático músico árabe que costumava animar casamentos na Síria e que, com sua túnica ritual, seu xale cafia, seus óculos de aviador e seu bigodão de Belchior, subitamente tinha se tornado uma estrela mundial da dance music? Seria algo mais além de uma excentricidade para plateias descoladas? O crítico do New York Times, Ben Ratliff, escreveu: "Tem havido pedregosas análises do quanto os ocidentais podem se enganar decifrando Souleyman - coisificando-o, fetichizando a crueza de sua música. Suas batidas são universais, o Leste atravessando e fundindo-se ao Oeste, cruzando entre outras coisas o choubi do Iraque (um tipo de música que é geralmente dançada em um estilo denominado debkeh) e os ritmos antilhanos. Mas, por meio de beijos solenemente endereçados à audiência, ele não é um performer ingrato, e o distanciamento de sua linguagem corporal combinada com a paixão de seu canto terminam registrados como uma forma de espetacular autoconfiança. Ele parece autêntico, o que explica em parte sua crescente popularidade no Ocidente. Mas ele também pode ser emocionalmente enriquecedor, o que arremata a explicação".De lá para cá, Omar Souleyman só fez solidificar sua reputação. Fez remixes para a fada islandesa Björk, parcerias com Gorillaz e Four Tet, tocou para multidões em festivais como o gigante Glastonbury, animou noitadas pelo mundo todo. Esta noite, às 21h, pela primeira vez no Brasil, o músico da Síria toca num bunker da cultura indie paulistana, o Beco 203 (Rua Augusta, 609), parte da 28ª edição do festival Popload Gig.Sua música hipnótica, de irresistível apelo dançante, é feita com base em ritmos sintetizados de instrumentos árabes originais e batida emprenhada pelo techno. "É como um árabe doidão tomando a pista, aquecido pela mesma fricção entre as batidas e a melodia concentrada que uma ocasião tornou a acid house tão poderosa", definiu o diário The Guardian.Era com base nessa música que ele ganhava a vida tocando em casamentos e batizados em Ras al-Ayn, sua cidade natal - até que os conflitos frequentes entre curdos separatistas, rebeldes e forças governamentais tornaram a vida insustentável. Ao lado do companheiro de palco, o tecladista Rizan Sa'id's, ele pavimentou um caminho que o levaria ao mundo todo.Acontece que uma de suas fitas caiu nas mãos do músico americano Mark Gergis, em viagem para Damasco. Dali em diante, Gergis passaria dez anos colecionando cassetes de Souleyman. Em 2007, Omar lançaria sua primeira coletânea nos EUA pela Sublime Frequencies, de Seattle (um selo especializado em um tipo de música garimpada em mercados de rua, transmissões capturadas de rádios, sons do underground). O vídeo Leh Jani, com seus personagens comuns, sua dança coletiva de um rito familiar tornou-se viral e rendeu convites para que ele se apresentasse pela Europa. Souleyman não fala francês nem inglês, somente árabe, então foi organizada para jornalistas brasileiros uma pequena bateria de entrevistas escritas com sua empresária como mediadora e tradutora. As respostas dele, apesar da mediação, nunca são exatamente polidas. Compará-lo a outros artistas de êxito do Oriente Médio ou Ásia, como a egípcia Natasha Atlas ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Kahn, que conquistaram os ouvidos de todo o Ocidente, parece enfurecê-lo. "Não estou tentando 'conquistar' nada nem ninguém. E também não tenho nada a ver com os nomes que você listou. Nunca foi minha intenção (chegar às grandes plateias), isso é simplesmente sua interpretação, que talvez possa ser apenas sua - ou talvez você deva reconsiderar sua questão, porque eu não vou responder isso", disse ao Estado.O ruído cultural prossegue pergunta a pergunta, e Souleyman não parece disposto a empreender um pacto de compreensão mútua. Muçulmano sunni, o artista conta que continua mantendo ligações com suas primeiras plateias e amigos, aqueles dos casamentos que animava com sua música nos arredores de Hasakah, no norte da Síria. Quando se menciona um possível elo entre sua cultura e o legado musical que professa, ele se enfurece novamente."Você está se referindo à minha religião. E eu não sei o que você quer dizer com legado e tradição musical relacionados à religião. É realmente confuso. Mas sinto que você quer saber sobre a música dabke tradicional ter se tornado mais e mais eletrônica e moderna. Bom, a eletrônica começou a ser usada cada vez mais e mais nos últimos 20 anos, substituindo os instrumentos tradicionais. E foi isso que me aconteceu", disse.A presença de Omar Souleyman no mundo do show biz parece um paradoxo em si. Normalmente, ele se recusa a falar sobre a situação política em seu País, tolhido por uma guerra civil - ele está vivendo na Turquia no momento. Mas o destino de sua pátria parece enredá-lo para além de sua vontade. Em dezembro, durante o concerto de abertura do Prêmio Nobel, em Oslo, na Noruega, ele participou de ato com outros astros, como o britânico James Blunt, a favor da Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons (OPCW), uma instituição baseada em Hague que luta para banir o uso de armas químicas durante conflitos globais. O governo sírio foi acusado de fazer uso desse tipo de armamento contra civis em regiões controladas por insurgentes.Alguns fãs mais extremados vão longe nas comparações entre Souleyman e equivalentes ocidentais. Já o emparelharam com Lou Reed. A poesia de Souleyman, quando traduzida, revela que ele realmente é invulgar. Ele costuma escrever suas letras e, muitas vezes, também recorre a poetas, como Hassan Hamadi - que pode escrever um poema em minutos, mesmo durante um show. Há complexidade no meio da simplicidade. "Você é como uma alta montanha que cada vez que eu escalo eu vou contando meus passos", diz uma linha. "Meu pequeno coração está batalhando pelo seu amor."O entendimento de Souleyman passa pela compreensão da necessidade de um contrafluxo cultural no mundo contemporâneo, um rio que corre contra as regras usuais. Ele é o contrário das convenções, com seu ritmo de sacerdote sufi de feira de bugigangas. "Sou feliz por tocar para 20 mil pessoas e também por tocar para 100 pessoas num clube pequeno. É tudo um prazer muito grande para mim. E eu amo tocar para plateias íntimas", ele diz, na entrevista que concedeu a contragosto.É como se não tivesse paciência para se distanciar de sua própria essência e virar personagem. "Naturalmente, eu mantenho sempre vínculos especiais com os amigos daqueles casamentos nos quais eu cantei um dia."

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