Entre a essência, a dúvida e o resto

Novelas do gaúcho Leonardo Brasiliense se perdem em recursos explícitos demais

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Por Beatriz Resende
Atualização:

Leonardo Brasiliense compõe a safra de autores gaúchos que ocupam lugar de destaque em nossa literatura contemporânea. Em Três Dúvidas, três novelas se desdobram em fragmentos, algumas delas com uma estrutura autônoma, quase como minicontos. As três narrativas se unem pelo que o título propõe: a dúvida.Na primeira, um homem comum vive um dia comum, carregando a tristeza que corre paralela à da mulher. Esse desalento doloroso - a melhor construção literária do volume - contrasta com a felicidade do irmão, da cunhada e da descendência que ostentam. A morte do casal invejado vai retomar a fala do coro de Édipo Rei, segundo o qual nenhum mortal pode se proclamar feliz antes do último dia de sua existência.As duas novelas que seguem, porém, não mantêm o fôlego inicial. A solidão partilhada, o medo do desconhecido, a iminência das perdas e a incerteza sobre a própria identidade são temas dominantes e sedutores. No entanto, o fracionamento excessivo, os recursos de construção de narradores e pontos de vista diferenciados um tanto ostensivos, o absurdo desgastado, atrapalham narrativas que, se menos submetidas a efeitos especiais, diriam melhor da lastimável condição humana de que fazemos parte. Assim, na última novela, a dor que cada um dos personagens carrega e que chega a se materializar em dor física no esboço de uma figura interessante, a mulher do jornalista que persegue uma investigação infrutífera, se esgarça diante de estranhas imagens e recursos demasiado explícitos.O sentimento de incompletude que pode decorrer da leitura parece ter surgido como alguma sombra ao autor, que se dirige ao leitor em parágrafo explicativo em que garante "é simples", e nos esclarece sobre as novelas: "A primeira trata de dúvidas existenciais; a segunda, de uma dúvida essencial; a terceira da essência da dúvida." Infelizmente, ficção não se explica, a menos que haja algo de errado. E o autor termina com arrogância: "Toda a literatura que mereça esse nome trabalha com uma ou outra. O resto é sociologia."A arrogância não é, forçosamente, um problema no artista. Não ajuda, porém, quando é excludente - "o resto..." - ou quando traz a onipotência de conhecer um enigma que se apresenta hoje como interessante justamente pela possibilidade de respostas múltiplas: o que é uma literatura que mereça esse nome.BEATRIZ RESENDE É PROFESSORA DA UNIRIO, COORDENADORA DO FÓRUM DE CIÊNCIA E CULTURA DA UFRJ E AUTORA DE CONTEMPORÂNEOS: EXPRESSÕES DA LITERATURA BRASILEIRA NO SÉCULO 21 (CASA DA PALAVRA)TRÊS DÚVIDASAutor: Leonardo BrasilienseEditora: Companhia das Letras(176 págs., R$ 36,50)

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