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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Enraiveça-se

Mandar alguém reduzir a intensidade de suas reações emocionais raramente é algo produtivo

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Atualização:

“Tenha raiva!” Está aí um conselho que a gente nunca ouve. Todo mundo manda a gente se acalmar quando está com raiva ou ansioso ou desesperado – enfim, qualquer emoção sendo expressada com intensidade incômoda. Quem manda a gente se acalmar está em parte querendo nos ajudar, em parte querendo aliviar seu próprio desconforto diante de nossa aflição. Tudo bem. O bem-estar pessoal é mesmo um grande motivador do altruísmo e da piedade. Mas mandar alguém reduzir a intensidade de suas reações emocionais raramente é algo produtivo. E, às vezes, pode nem ser desejável.

“Tenha raiva!” Está aí um conselho que a gente nunca ouve Foto: Giacomo Zanni/Pixabay

É difícil abrir o jornal hoje em dia e não sentir a raiva subindo. Na verdade, acho que atualmente está complicado até abrir os olhos sem sentir alguma dose de estresse. Ainda mais se você os abrir já em cima do celular – daquela tela emanam eflúvios maléficos que atingem nosso cérebro por meio dos olhos, acionando botões e disparando em nós coisas ruins que nem sabíamos ter guardadas. Seria realmente bom se acalmar nessa hora. Talvez evitássemos que algumas placas de gordura a mais se agarrassem em artérias vitais. Mas venha alguém dizer que nos acalmemos para ver o que acontece. Quando fazem isso conosco – ou quando fazemos com os outros –, aquele turbilhão negativo só faz aumentar. Quem está nervoso ouve esses conselhos como uma tremenda desqualificação de seu sentimento – de alguma forma, é como se estivessem sendo acusados de exagerar. Dizer “acalme-se” é recebido como um enervante “não é para tanto”, ou coisa que o valha. Mais do que isso, às vezes, a raiva é a única arma que temos – e pedir para abrirmos mão dela é como nos deixar indefesos. Pode nunca ter acontecido com um leitor ou uma leitora tão zen como você, mas com um articulista tão pouco cordial como eu não é raro alimentar por um tempo sentimentos reprováveis contra uns e outros como forma de vingança. Sim, sim, isso não adianta nada e só prejudica a mim mesmo. Por isso que tento manter a reação restrita a poucos dias. Uma vez devidamente ofendida em minha mente, deixo a pessoa ir embora em paz. E obviamente quem fica em paz nesse momento sou eu. Tudo tem limite, no entanto. Já tive muita, muita raiva mesmo de alguns políticos. Quase no nível daquela que Jesus condena como uma forma de homicídio. Mais de uma figura pública já me tentou com esse pecado. Aí já é demais. Uma irritação de estimação pode ser uma forma de reforçar para nós mesmos a certeza de que não podemos concordar com determinadas coisas. Uma raiva um pouco maior pode ser o motor para mudança se conseguirmos fazer dela combustível para nossa indignação ativa. Mas o ódio passou da conta quando leva ao desejo de morte daquele que nos deixa bravos – daí o alerta bíblico. Se alguma das páginas desse jornal de hoje ou alguma das notícias desse site pelo qual você está navegando te tirou do sério, tudo bem. Use essa emoção como um farol para iluminar o que você acha errado; talvez até como uma forma de te estimular para lutar por transformações. Enraiveça-se. Só tome cuidado com o ódio. Porque, se alimentamos esse monstro, com o tempo ele é capaz de engolir até mesmo o amor.  É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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