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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Emoção pura

Atualização:

Ainda não resolvera na minha cabeça se convidaria alguém para ocupar este espaço, consoante a campanha feminista #AgoraÉQueSãoElas, quando bati os olhos num artigo de Ava Kofman sobre Clarice Lispector, publicado no último número da revista The Nation, e suspirei: “Ah, se eu pudesse ceder minha próxima coluna a Clarice”. Quatro décadas atrás isso seria factível. Não só porque ela ainda era viva, mas porque estava momentaneamente sem espaço na imprensa. Em 1975, Clarice não escrevia mais aos sábados no Caderno B do Jornal do Brasil - demitida, vê se pode! De todo modo, duvido que eu tivesse o desplante de convidá-la e, se convidada, ela aceitasse.  Nem éramos amigos. Só estive com ela em duas oportunidades: quando a perfilei para a revista Setenta (luxuosa afetação editorial da Abril para circular apenas durante o ano de 1970) e quando a redação do Pasquim a entrevistou, quatro anos mais tarde. Ao concluir a leitura do artigo da Nation, tomei duas decisões: aderir à campanha das mulheres e manter minha escolha inexequível, ainda que de maneira oblíqua.  Há tempos admirada nos países europeus de língua latina, Clarice recentemente estourou para valer nos EUA. Sua obra já passou pelas mãos de meia dúzia de tradutores; ela foi capa da Bookforum e ganhou uma biografia de seu maior entusiasta estrangeiro, Benjamin Moser, que se esbalda nas mídias sociais a cada nova e sempre merecida louvação à sua biografada.  Suspeito que Elizabeth Bishop tenha sido a primeira gringa a encantar-se com o singular talento de Clarice. “É a escritora mais não literária que conheci”, revelou em carta ao poeta Robert Lowell, após traduzir três contos dela, no início dos anos 1960. Considerava-a superior a Borges e suas narrativas, tchecovianamente sinistras e fantásticas, em geral protagonizadas por criaturas nada sofisticadas, como empregadas domésticas e motoristas de táxis, as que melhor expressavam o Brasil com o qual convivera.  Nosso primeiro encontro se deu poucos meses antes da Copa do Mundo no México. Contava me defrontar com uma pessoa algo esquisita, cheia de não me toques, que podia ter ficado olhando fixo para mim, sem abrir a boca, como fez com uma fanática admiradora que recebeu e constrangeu em seu apartamento no Leme, mas a conversa correu sem solavancos do princípio ao fim, com inevitáveis desvios pela depressão (dela) e enriquecedoras digressões sobre, por exemplo, De Chirico, que a imortalizara num quadro mantido ao lado do sofá da sala. Impressionei-me com seus longos dedos de pianista e sua voz gutural, afrancesada por erres enrolados, apenas um defeito de dicção. O foniatra (e também escritor e ucraniano) Pedro Bloch prontificara-se a corrigi-lo, mas ela, com preguiça de fazer os exercícios em casa, desistira. “Meus erres não me fazem mal algum”, justificou-se.  Para descontraí-la ainda mais, puxei trela sobre futebol e o Mundial entrante. Foi quando descobri que ela também torcia pelo Botafogo e adorava Jairzinho, o futuro “furacão da Copa”. Sua imensa ternura pelos animais, nunca humanizados nem tratados metaforicamente em suas histórias (“Devemos respeitar sua natureza; sou eu que me animalizo”), ocupou boa parte do bate-papo. Clarice considerava os bichos uma forma acessível de gente, “criaturas muito mais próximas de Deus”. A seus pés, atento ao tête-à-tête com aquele olhar doce que só os cães têm, seu vira-latas Ulisses, “o mulatinho da casa”. Gostava tanto dele que, de uma feita, quando lhe perguntaram de que maneira retrataria a morte, respondeu: “O meu cachorro me procurando por todo o apartamento”. Essa entrevista nunca foi publicada. Acharam-na “meio deprê” para uma publicação frívola e euforizante como a Setenta. Seus originais se perderam no Dedoc da Abril.  No segundo encontro, no mesmo cenário, enquanto os demais emissários do Pasquim lhe faziam perguntas, Ivan Lessa e eu, bem posicionados no chão, ao lado de uma estante, arrumamos um jeito de, sorrateiramente, xeretar as anotações que ela fazia em seus livros. O mais grifado e anotado era aquela antologia de entrevistas da Paris Review (Escritores em Ação), que a Paz e Terra traduzira seis anos antes. Clarice, quem diria, nutria enorme curiosidade sobre o que seus colegas pensavam do ofício de escrever. Escrever bem não fazia parte de suas preocupações. “Isso vem por si mesmo.” Limitava-se a “procurar em si própria a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza, aos poucos sobe à tona - até vir como num parto a primeira palavra que a exprima”. Sua compulsiva intuição lhe abriu as portas para o sublime. Emoção pura, sem qualquer presunção intelectual, escrever, para ela, era mais do que associar palavras e ideias, “era fulgurar”, como bem disse Otto Lara Resende, “imolar-se, na prosa cerrada, em busca de uma iluminação poética”.  Sua proverbial morbidez, manifesta já em seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, inspirou um poema de João Cabral de Mello Neto. “Nascer me fez mal à saúde” era um de seus aforismos prediletos. Dizia não ter coragem de morrer, adorava contar piadas sobre defuntos e por uns tempos acreditou que conseguiria viver até os 92 anos - ou seja, até 2012. Queria morrer escrevendo, o que de fato aconteceu, pois ainda tocava adiante Um Sopro de Vida - Pulsações quando nos deixou às 10h20 de 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos. Receava ser esquecida (“Será que depois de eu morrer vão silenciar sobre mim?”, perguntou-se numa crônica), mas não queria que lhe erguessem monumentos nem a homenageassem com uma rua. Um anjo de gesso no túmulo, “um anjo querido, meu anjo de guarda”, aceitava. Não lhe deram o anjo, mas já a homenagearam com uma rua, no Itanhangá, bairro nobre da zona oeste do Rio, e em breve a veremos em forma de estátua, na calçada da praia do Leme, acompanhada de seu amado vira-lata. 

Opinião por Sérgio Augusto
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