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Em sua 90.ª peça, Paulo Autran recria O Avarento

Aos 83 anos, o ator recria o personagem Harpagon, o avarento do título, do genial dramaturgo francês Poquelin Molière

Por Agencia Estado
Atualização:

Há uma intensa movimentação no palco do Teatro Cultura Artística num dos últimos ensaios de "O Avarento", de Molière, que estréia sexta-feira para convidados e sábado para o público. Em meio ao corre-corre, um fotógrafo sussurra a Paulo Autran que gostaria de fotografá-lo lá no alto do cenário. Imediatamente, Autran pede, baixinho, uma escada. A explicação para o tom de voz é revelada em seguida. Lá em cima, sorridente, ele faz pose para o fotógrafo, com jeito de quem faz travessura. No palco, o diretor Felipe Hirsch fica muito pálido ao se dar conta da cena. "Absurdo", diz , visivelmente preocupado. "Eu disse para não fazer isso." Mas pouco depois, recuperado do susto, ri da situação. "Eu estou muito feliz", é uma das primeiras frases de Paulo Autran. Não é para menos. A escolha de um bom repertório está entre as marcas registradas desse ator que atua agora na 90.ª peça de sua carreira. Ao emprestar seu talento para recriar no palco o sovina Harpagon, estará interpretando o quarto personagem escrito pelo genial dramaturgo francês Poquelin Molière (1622-1673). Mais uma vez, ele escolhe uma das chamadas comédias trágicas desse autor porque provocam riso intenso, mas sem abrir mão de uma crítica contundente à natureza humana. "Quanto mais ele é mal-humorado, mais engraçado se torna" Avareza, insensibilidade, vaidade, muitos são os defeitos de Harpagon, o avarento do título, cujo excessivo apego ao dinheiro faz a infelicidade de seus filhos, a humilhação de seus subordinados e, o mais grave, corrompe todos ao seu redor. Por tudo isso, ele é um presente para todo grande ator. Pode parecer contraditório, mas aí reside o gênio de Molière. "Quanto mais ele é mal-humorado, mais engraçado se torna", observa Paulo Autran. Ensaio iniciado e Paulo Autran, aos 83 anos, logo mostra que nesse espetáculo de muitas qualidades observá-lo na pele de Harpagon é um prazer à parte. Afinal, trata-se de um grande talento aprimorado em quase 60 anos de carreira, iniciada na peça "Esquina Perigosa", dirigida por Madalena Nicol, que estreou no Teatro Municipal de São Paulo no bojo do forte movimento de renovação do teatro brasileiro iniciado com grupos amadores. Autran é o que os antigos chamavam de "bicho de cena". Sabe quebrar uma frase no momento certo, variar as entonações de uma mesma palavra, calcular o tempo de uma pausa, o efeito de um gesto. Claro que ele nega tudo isso. Diz sempre que cada novo papel é um grande desafio, um reinício. Mas sabe-se que não é bem assim. Nessa 90.ª criação teatral - sem contar filmes, novelas, especiais em TV - há conhecimentos acumulados que só precisam ser acionados. Mas na interpretação de Harpagon houve algum aspecto realmente difícil? Alguma exigência do diretor ainda não cumprida? "A constância do mau humor", responde Paulo Autran, após pensar um pouco. "Eu acho que estou fazendo ele terrivelmente mal-humorado, mas o Felipe, ainda agora no intervalo do primeiro para o segundo ato, cobrou mais ainda esse aspecto. Eu tenho a tendência a fazer ele mais leve, mais suave do que ele é." Claro que há momentos em que cabe essa leveza, sobretudo naqueles em que o personagem é bajulado e se torna ridículo em sua vaidade. "Nesses momentos sim, eu posso ser até bem-humorado mas só aí. Fora disso, ele tem de ser insuportável e manter isso o tempo todo não é fácil. Eu saio do palco exausto. Mas muito contente também." "Interessa que as pessoas saiam pensando sobre esse homem que enterrou a felicidade junto com o seu dinheiro" E o público? Sem dúvida há um belo espetáculo no palco, mas que também pode ser incômodo. Afinal, o acúmulo de riquezas do protagonista aliado à sua sovinice provoca nos criados o desejo de roubá-lo e, em seus próprios filhos, o desejo de que ele morra. "O alvo principal de Molière era a burguesia de sua época, que hoje poderia ser identificada com a classe média. Mas a mim não interessa a agressão e sim a poesia. A crítica agressiva provoca rejeição. A mim interessa a reflexão, interessa que as pessoas saiam pensando sobre esse homem que enterrou a felicidade junto com o seu dinheiro. Só há uma coisa datada nessa peça: hoje são os filhos que muitas vezes colocam o dinheiro à frente do amor", observa. Ao ser convidado para a direção, Felipe Hirsch lembra que sentou-se com a cenógrafa Daniela Thomas num bar tradicional - por ironia depois fechado, resultado da especulação imobiliária que atropela afetos e memórias - para discutir o conceito da montagem. "Daí decidimos por esse cenário que lembra caixas de uma trupe que se apresenta ao ar livre. Queríamos trabalhar com a idéia da repetição. A repetição dessa poesia de 400 anos, a repetição desse homem em sua 90.ª peça", diz. Para ele, a peça também fala da resistência do amor pelo teatro - personificada no ator protagonista - e do próprio ato teatral, arte milenar, que resiste na metrópole sitiada por essa onda de violência. O Avarento. 100 min. 12 anos. Teatro Cultura Artística (1.150 lug.). Rua Nestor Pestana, 196, 3258-3344. 5ª a sáb., 21h; dom., 18h. R$ 30 a R$ 80. Estréia sábado

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